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Paulo César Gonçalves: Guimarães sofre do mesmo que o resto do país

Redação
Sociedade \ domingo, fevereiro 20, 2022
© Direitos reservados
Foi o dramaturgo da abertura de Guimarães 2012 e é autor de vários livros. Paulo César Gonçalves fala do processo criativo, de futebol, de depressão e deixa perguntas sobre a cultura em Guimarães.

* Esser Jorge Silva e José Luís Ribeiro

 

Autor de vários livros, alguns referentes à história e tradições vimaranenses, como um Manual (para um pequeno) Nicolino O Primeiro, uma reinterpretação de D. Afonso Henriques, outros inspirados, por exemplo, em Charles Dickens, como Um (outro) conto de Natal, Paulo César Gonçalves publicou recentemente A Lanterna que aquece o Mundo. Em entrevista ao jornal O Conquistador, partilhada pelo Jornal de Guimarães, lamenta o facto de as crianças, "excelentes pensadoras e críticas", serem ouvidas "pouquíssimo", fala sobre depressão e diz que passa algum do seu tempo a desenhar camisolas de futebol antigas, embora não tenha "pachorra" para ver qualquer jogo do futebol de hoje.

 

Dez anos depois o que lhe ficou no coração de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura

Saudade(s). E a sensação de que se viveu um tempo único. A Capital Europeia da Cultura foi uma oportunidade.

 

E o que ficou quando veio o tempo da razão?

A Capital Europeia da Cultura abriu-me portas, umas boas, outras que eu preferia ter evitado: houve uns habilidosos que nela viram a oportunidade (lá está, tudo tem mais do que um lado) de exibir as plumas, apanhando, pela via errada, ou pelo atalho, o comboio da "cultura". Parecia bem, era moda e ainda se capitalizava a figura. Eu, deslumbrado, fui em cantigas. Portanto, ficou um sentimento de que participei num tempo absolutamente único, mas que o que se seguiu ficou aquém.

 

Apesar de ter escrito os livros “Manual (para um pequeno) Nicolino”, “Um Outro Conto de Natal” e “A Lanterna que aquece o Mundo”, recusa a ideia de ser tratado por escritor. Não é assim que se vê?

Vejo-me como sou: uma pessoa que cria, que é o que todos somos, no fundo, e podemos ser. Sou um criativo. Um autor. Um escritor é outra coisa, não por um exclusivo divino ou de especial aptidão para o mester da escrita, mas alguém que vive do que escreve. Nunca gostei do deslumbramento, nem do desprezo, ou, se preferir, do enche-chouriças que leva umas palmadinhas nas costas. Gostava que o tratamento deferente ou condescendente fosse trocado pelo natural respeito que qualquer profissão merece. Sei que parece que estou a reduzir isto a um mero serviço remunerado, mas é o que é. Escrever não faz de mim um escritor, por tudo o que enunciei. É a minha forma de ver o panorama.

 

Dentro do que é o Autor, como se assumiria?

Escrevo do ponto de vista de um dramaturgo, porque é o meio com o qual me identifico. Há um diálogo interior e exterior que me interessa explorar. Não gosto nada de rótulos, mas se eu pudesse catalogar as narrativas por onde circulo, chamar-lhes-ia uma espécie de realismo mágico/folclórico, no sentido do imaginário das lendas e folclore (tradição oral). Escrevo e crio como se a grande peça estivesse sempre em construção, e, para além do mais, com a noção de que aquilo produzido nunca bastará.

 

Como assim?

Há uma espécie de catarse muito constante no que crio: está bom depois de muitas voltas, mas passa à condição de deficitária depois de umas luas. Há uma insatisfação latente. Espero que seja uma característica própria de quem cria (e não exactamente algo que tenha que ver com perfeccionismo). Antes de tudo o resto, não quero levar-me muito a sério. É uma chatice que gosto de abominar.

 

"Quantos, em 10 anos, conseguiram, a partir de Guimarães, furar as muralhas para a internacionalização?"

 

Guimarães e o seu futuro: de produtores industriais a consumidores de industrias culturais. Vamos no bom caminho?

Temos público, envolvência e sentido de inclusão que justifiquem a existência de tantos equipamentos culturais na área urbana/centro da cidade? A nossa oferta é para o quê/para quem? Quem beneficia? Qual é o princípio de relação? Quantos, em 10 anos, conseguiram, a partir de Guimarães, furar as muralhas para a internacionalização? Tenho estas perguntas. Depois de respondidas, talvez arrisque uma resposta.

 

Guimarães e a sua sociedade civil: Há massa crítica que alicerce os decisores políticos

Guimarães sofre do mesmo que o resto do país: um Abril adiado. Horácio escrevia que quem começa tem metade do trabalho feito. Falta-nos a outra metade. Não basta dar o mesmo a todos, ou assumir a falácia das mesmas possibilidades. Possibilidade passa, primeiro, pelo poder da escolha. Sem corridas mais ou menos combinadas, ou circunstancialmente arranjadas. Não me refiro a eleições: foco-me no essencial, antes dessas escolhas, falo da equidade, que não existe e não faz escola. Dar e receber, como cantava Variações.

 

A quem cabe pensar a cidade de Guimarães do século XXI? E o que exigir como cidadão?

A todos. Parece uma tirada ingénua, e até fácil, mas a verdade é que mesmo uma criança, pela sua ausência de vício, terá algo a acrescentar ao pensamento de uma comunidade. As crianças são excelentes pensadoras e críticas. Ouvimo-las pouquíssimo. E tratámo-las, demasiado, como dados adquiridos. É destes pequenos progressos que nasce a exigência. E com isso, uma outra possibilidade de futuro.

 

Viver no Centro Histórico ou viver o Centro Histórico. Quais as diferenças?

O mesmo que viver nos arredores ou viver os arredores. Muitas freguesias do nosso concelho assumiram a condição de dormitórios, porque as pessoas vivem lá, mas não fazem vida lá: limitam-se a utilizar o poiso. O centro histórico é igual. Queremos um local com vida, com o quotidiano que bate à porta, com a efervescência do comércio local, da hotelaria e dos restaurantes/cafés, ou um museu a céu aberto? Eu vivo no centro histórico e tento vivê-lo. Faço a minha parte (acho eu).

 

Também gosta de futebol. O futebol é uma festa ou uma alienação?

O futebol é um desporto extraordinário que foi capturado por muitos interesses. Já não vejo um jogo de futebol há muito tempo, por falta de pachorra. Não tenho duas horas para lhe dar. O futebol é importante para quem dele faz vida. Os outros é que podem viver alienados em função dele.

 

 

“Vitória, paixão sem razão” era o título; o que seria o conteúdo e o pensamento?

Há sempre razões, mesmo que dificilmente explicáveis. Esse título remete-me, essencialmente, para a quase ausência de títulos (em muitos casos, justifica-se a escolha de um apoio a determinado clube pela sua capacidade vitoriosa). No caso do Vitória, acaba por ser um prolongamento do bairrismo vimaranense. Explicar o Vitória é, em boa parte, tentar explicar Guimarães, e estou a recordar-me que o Professor Amaro das Neves, penso que foi ele, utilizou um termo para isso, julgo que "hiperidentidade", ou algo assim. E também já li "patriotismo de cidade". O Vitória será uma emanância disso, não?

 

Discurso sem método: se há adversário, logo há inimigo. Será?

Não. Um adversário não tem de ser, fatalmente, um inimigo. Aliás, tendencialmente não precisa de o ser, e é bom que o não seja.

 

Assumiu publicamente e sem pudor que padece de depressão. Como entra ela em nós?

Não posso dizer como entra em todos. Mas posso tentar esclarecer como entrou em mim: deficitária gestão de expectativas, quebra de vínculos de confiança, violência (de várias formas), constante estado de alerta/stress pós-trauma. Por outro lado, alguém diz que o trauma não é o que de mau acontece a uma determinada pessoa: é o que, resultante do que de mau lhe aconteceu, acontece dentro dela. Pode ser por aí, genericamente falando.

 

E como nos consciencializamos que ela entrou em nós?

Como me consciencializei: quando comecei a trocar o "por que não?" pelo "para quê?". O triunfo do tédio. Quando o presente e o futuro são uma massa disforme de (aparentes) problemas, em vez de um espaço vazio para a possibilidade.

 

Perante a escuridão interior, onde ir buscar a espiritualidade?

Aos pequenos avanços do quotidiano: à coragem de enfiar os pés na rua, de ainda conseguir esperar o melhor (seja o que isso for), e, lá no fundo, acreditar que, ao contrário do que dizia o Peter O'Toole, não nos limitamos a passar de uma sala fumarenta para outra.

 

E a religião?

A religião desempenhou um importante papel na construção da nossa civilização. A minha relação com a mesma tem por base as circunstâncias em que me vi criado. Mas a minha escolha, consciente, e gosto de acreditar que lúcida, é manter-me à parte: sou agnóstico.

 

5 RESPOSTAS RÁPIDAS
  1. Sugestão gastronómica? Pudim da Marcela Fernandes.
  2. Que livro está a ler? Estou a reler O  Elemento, de Ken Robinson, e a biografia ilustrada de António Variações (já tinha lido a oficial, de Manuela Gonzaga, Entre Braga e Nova York).
  3. A música que não lhe sai da cabeça? Ultimamente, Smokestack Lightning, de Howlin' Wolf, e I've got a feeling, dos Beatles (efeitos do documentário Get Back, de Peter Jackson)
  4. Um filme de referência? Caramba. Só um? Lawrence of Arabia (porque o Peter O'Toole é o meu ator favorito).
  5. Passatempo preferido? Eu ia escrever ler, mas ler faz, de tal forma, parte do meu trabalho, que já é demasiado orgânico. Nem é trabalho, na verdade: sou eu. Assim, o meu passatempo é desenhar camisolas inspiradas em equipamentos de futebol antigos.

 

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de fevereiro de 2022 do Jornal O Conquistador.]

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