
Guimarães nunca deixou de ter espírito empreendedor
Provavelmente pela primeira vez na história da Assembleia Municipal de Guimarães, um presidente termina o seu mandato com o reconhecimento unânime de todos os deputados — um gesto raro e simbólico, traduzido numa ovação de pé, proposta pelo principal partido da oposição. José João Torrinha, 50 anos, com uma liderança marcada por processos simples, decisões seguras e uma condução assertiva e justa, mostrou ser possível exercer a política com civilidade, decência e fidelidade aos princípios democráticos. Na hora da despedida, o advogado vimaranense afirma nunca ter sentido “apelo por funções executivas” e reafirma a sua vontade de continuar a exercer a profissão. Defende, no entanto, uma reforma do modelo autárquico que permita Executivos Municipais monocolores e um novo regime para as Assembleias Municipais. Em entrevista exclusiva a O Conquistador, José João Torrinha fala ainda sobre a dinâmica interna do PS, partido de que é militante, confessando algum desconforto com uma lógica de “disputa pelo poder” e com o número elevado de filiados — quase cinco mil — o que, segundo Torrinha, “não implica necessariamente um aumento da massa crítica”.
ENTREVISTA: Esser Jorge Silva e José Luís Ribeiro
FOTOS: Paulo Pacheco
Diz-se que a Assembleia Municipal (AM) devia ser o espaço maior da democracia local mas continua a ser uma “instituição invisível”. Como levá-la ao âmago dos vimaranenses?
Devia e é. A Assembleia Municipal é efetivamente o maior, mais diverso e por isso mais importante fórum de debate político local. Infelizmente e apesar de esforços levados a cabo para combater essa “invisibilidade”, continua a dizer pouco a muitos cidadãos. No entanto, sempre que estes têm queixas e pretendem dirigir-se aos seus eleitos, é à Assembleia Municipal que se costumam dirigir. Mas, sim, há claramente, um caminho a fazer nessa aproximação aos eleitores.
Que soluções preconiza?
Em minha opinião, as soluções para resolver em definitivo esse défice de notoriedade dependem mais de se fazer uma reforma profunda a nível legislativo, dos poderes e da configuração dos órgãos autárquicos. Quando o executivo municipal se transformar efetivamente num governo municipal e a Assembleia verdadeiramente no parlamento local, esse problema fica debelado.
A ideia, anteriormente de Guterres, de um executivo municipal monocolor saído de eleições para a Assembleia Municipal ressuscitou com a AD. Qual a sua posição e porquê?
Sou favorável a essa reforma. Acho que um executivo monocolor e uma Assembleia com poderes e meios reforçados permitiria maior e melhor governabilidade, assim como maior e melhor escrutínio.
Que poderes da Assembleia Municipal poderia ser reforçados e como se melhoria o escrutínio?
Se pensarmos nos poderes e estruturas de que dispõem os deputados à Assembleia da República, julgo que teríamos um bom modelo para (devidamente adaptado à realidade de um município, como é evidente) repensarmos a forma de atuar de uma Assembleia Municipal, enquadrada num regime legal diferente.
Até que ponto a sua formação em Direito molda a forma como conduz os trabalhos da Assembleia Municipal? Ainda há espaço para a política além do discurso do legal e do ilegal?
A formação em direito ajuda-me em algumas questões, mas não molda a forma como conduzo os trabalhos. Isso tem mais a ver com a personalidade de cada um e com a forma como encaramos o exercício do cargo. No dia em que a vida política não passe além do discurso do ilegal estaremos em muito maus lençóis.
Na última sessão da Assembleia Municipal os deputados levantaram-se a aplaudi-lo perante o elogio do PSD à sua postura na condução de trabalhos. Nenhum membro do executivo camarário se levantou ou aplaudiu. Como interpreta? Inveja, discórdia …?
Sinceramente, nem reparei se assim foi. Mas como conheço muito bem quer o Presidente, quer todos os vereadores e a opinião que têm acerca da minha pessoa, tenho a certeza que não significou nada disso. Era um momento para os meus pares se manifestarem, o que fizeram e o que muito me honrou.
Não reparou mas certamente confirmou posteriormente?
Não. Nem confirmei, nem preciso de o fazer. Repito: sei muito bem a consideração que o Presidente e os vereadores têm por mim. E quando assim é, nada há a provar. E ninguém vai conseguir meter qualquer areia nessa engrenagem.
Se tivesse de escolher uma única reforma para implementar na Assembleia Municipal antes de terminar o mandato, qual seria — e porquê?
Acho que seria importante que quando o público se dirigisse à Assembleia, a Câmara pudesse intervir. É algo que o atual regimento não permite, mas que, em minha opinião, traria vantagens para todos.
Dentro do PS “alinha” pelo “desalinhamento”, uma espécie de “Maria que vai com ninguém”. É essa postura que o afasta da eleição para lugares de decisão mais executiva? Ou tem receio de se perder num meio político tão raso?
Não é bem como dizem. Em todas as disputas internas ocorridas ao longo dos últimos anos, nunca deixei de tomar posição. Sempre deixei claro do lado em que estava. A ausência de lugares com vocação mais executiva tem mais a ver com a forma como sempre encarei a minha participação na vida política e designadamente com a vontade de não abdicar de exercer a minha profissão.
Admitia uma função política mais executiva, em qualquer contexto, em que não fosse “obrigado” a abdicar da profissão?
Em 2013 (em que fui sétimo na lista à câmara) cheguei a ponderar, se fosse eleito, exercer o mandato de vereador em meio tempo. Na altura, discutia-se se isso era legalmente possível, face ao Estatuto da Ordem dos Advogados. Hoje a lei é clara (não é possível) por isso é uma não questão. De qualquer forma, sendo honesto, tenho de dizer que nunca senti propriamente o apelo por esse tipo de funções. Tem também a ver, se calhar, com a forma como fiz o meu percurso pessoal e profissional, tendo chegado à vida política já com um percurso feito fora dela.
Como lida com a ideia de um PS que tem, em militantes, quase 5% da população ativa vimaranense? Isso é um “grande partido” ou um “partido grande”. Reflete-se na massa crítica partidária?
Já o disse internamente e posso dizê-lo aqui. É uma situação que não me deixa confortável, porque se explica mais numa lógica de disputa interna pelo poder, do que resultado de um crescimento sustentado em efetiva identificação com os valores do partido. E sim, um aumento de militantes, por si só, não implica necessariamente um aumento da massa crítica. Paradoxalmente, até a pode diminuir.
Isso acontece em Guimarães ?
Pode acontecer em qualquer sítio onde o crescimento é feito nos termos que referi. O problema de quem aposta em estratégias que passam pela construção de exércitos de militantes é que “obriga” os demais a seguirem caminho idêntico, num ciclo vicioso difícil de travar. Perdem todos, em minha opinião.
Mais de três décadas na liderança municipal não conduzem a um afastamento da realidade, a um certo autismo político ou até a práticas e tiques desaconselháveis?
Não necessariamente. É preciso é que a força maioritária saiba reinventar-se, acolher novas ideias, pessoas e projetos e nunca dê nada como garantido. Ora, em minha opinião, o PS em Guimarães é um bom exemplo dessa capacidade. Soube sempre apontar a caminhos novos e nunca se vergou a tiques autoritários. Por isso tem tido a confiança dos eleitores.
Guimarães é apontada como exemplo de “cidade de cultura”. Será que essa cultura está acessível a todos no concelho? Temos discursos sobre a igualdade ou práticas ativas para a desigualdade?
Sou de opinião que a política e as práticas culturais no nosso concelho têm permitido um acesso à cultura que é transversal, quer em termos sociológicos, quer mesmo em termos territoriais. Acho que os responsáveis pelo pelouro ao longo dos últimos largos anos nunca deixaram de ter essa preocupação.
Vários artistas queixam-se, por exemplo, de não conseguirem alugar o Centro Cultural Vila Flor (CCVF) para apresentarem, por sua conta e risco, os seus trabalhos. Advoga uma “cultura de gosto e censura” como lhe chamou Vânia Dias da Silva?
Essa cultura do gosto e censura já foi amplamente desmentida pelos responsáveis pelo setor, em quem confio. Felizmente, no nosso concelho não faltam estruturas onde todos têm lugar. O CCVF é mais uma.
“Deixou de se falar em Unesco e Festas Nicolinas. Era isto que se pretendia?”
A vontade coletiva, manifestada há muito em sede de Assembleia Municipal, é a de que as Nicolinas sejam reconhecidas pela Unesco como património imaterial. Têm sido dados passos nesse sentido, embora o processo esteja bem mais demorado do que, creio, todos entenderiam como desejável.
O que o preocupa mais no atual modelo de desenvolvimento urbano de Guimarães: a pressão imobiliária, a desertificação do centro ou a falta de visão estratégica?
Nenhuma delas. Guimarães tem sabido desenvolver-se sem exageros ou padrões urbanísticos preocupantes. Uma questão de desenvolvimento urbano que valeria a pena discutir seria se não deveríamos permitir que a oferta de habitação nas vilas e freguesias mais periféricas fosse incrementada.
E deveria ou não?
Sem ser especialista na matéria, julgo que sim. Seria mais uma forma de fixar mais a nossa população e desincentivar que procurem outras soluções em concelhos vizinhos.
“Guimarães não tem acompanhado o ritmo de crescimento de Famalicão, Braga e Barcelos”? “Temos de voltar às nossas bases fundadoras que fizeram de Guimarães uma cidade única" ?
Não concordo com a primeira afirmação. Aliás, acho que muita da discussão política local se faz muitas vezes com base em “achismos” sem base factual visível, o que é mau para todos: poder e oposição. Quanto à segunda, teriam de me explicar o que é isso das “bases fundadoras que fizeram de Guimarães uma cidade única”. Porque podem ser coisas muito diferentes para diferentes pessoas.
A primeira afirmação foi proferida por António Magalhães, ex-presidente da Câmara, em entrevista a O Conquistador. António Magalhães formula as suas opiniões sem base factual?
Eu sei que foi. O que não muda o sentido da minha resposta.
A segunda afirmação é de Paulo Novais que foi Juiz da Irmandade de São Torcato, é Professor Catedrático e recebeu a medalha municipal de Mérito Científico. Ele defende que é preciso recuperar o espírito empreendedor e orientá-lo para as indústrias e serviços do futuro. Diz ainda que é preciso ter o engenho de planear um território capaz de criar as condições de progresso e modernidade para reter e atrair gente talentosa e ambiciosa para participar numa nova história de sucesso e progresso.
Se é isso que se queria dizer quanto às tais “bases fundadoras”, ninguém de bom senso pode discordar. O que acho é que Guimarães nunca deixou de ter espírito empreendedor, nunca deixou de ver crescer indústrias e serviços de futuro e nunca deixou de atrair gente talentosa e ambiciosa.
É uma pessoa de fé?
Sou.
Existe alguma figura da Igreja Católica que mais o tenha marcado e tenha influenciado o seu quotidiano?
Sim. A figura de Jesus Cristo. Não deixa de ser espantoso como, mais de dois mil anos após a sua existência, os seus ensinamentos ainda sejam, em muitos aspetos, não só atuais, como verdadeiramente revolucionários.
5 respostas rápidas |
Rojões à moda do Minho.
“Caminhando com o destino” de Andrew Roberts. Uma biografia de Winston Churchill.
Todas as de Elliott Smith.
“Blade Runner”, de Ridley Scott.
Correr. |
[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de junho de 2025 do Jornal O Conquistador.]