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Anna Lenz: “As cápsulas revolucionaram a maneira de se beber café”

Tiago Mendes Dias
Economia \ quarta-feira, junho 21, 2023
© Direitos reservados
Presente em Guimarães para a apresentação do projeto de recolha e reciclagem, a CEO da Nestlé Portugal realça o quão “fácil” é hoje dar “segunda vida” às cápsulas e fala dos projetos da empresa.

Além de ser o segundo município português, depois de Cascais, a aderir ao projeto de recolha e reciclagem de cápsulas de café coordenado pela Associação Industrial e Comercial do Café (AICC), Guimarães está a fazer “uma campanha muito boa de consciencialização dos consumidores”, considera Anna Lenz, diretora executiva (CEO) da Nestlé Portugal, organização responsável por cinco das 12 marcas de café envolvidas no projeto: Nespresso, Nescafé Dolce Gusto, Sical, Buondi e Starbucks.

Há quase 20 anos ligada à maior multinacional de alimentos e bebidas no planeta, a gestora suíça, de 43 anos, assume o muito trabalho a fazer para reduzir a pegada carbónica da Nestlé, apesar de o pico de emissões ter sido atingido entre 2018 e 2019: embalagens 100% recicláveis e aumento das práticas de agricultura regenerativa são objetivo.

Líder da Nespresso Portugal entre 2017 e 2020, Anna Lenz tornou-se, a 01 de julho de 2022, na primeira mulher CEO da Nestlé Portugal, empresa ligada ao país há precisamente 100 anos. Formada em matemática teórica, a gestora fala sobre conjugação do trabalho e da maternidade e lembra que sempre teve dificuldades em saber o que queria ser, algo que lhe deu abertura a oportunidades diferentes. Em entrevista exclusiva ao Jornal de Guimarães a propósito da presença na cidade-berço, a responsável por uma empresa com volume de negócios de 677 milhões de euros em 2022 aconselha os jovens a evitarem planos de carreira demasiado estritos.

 

Guimarães apresentou o projeto de recolha de cápsulas de café, num evento em que a Anna Lenz marcou presença. Qual foi o envolvimento da Nestlé Portugal? Semelhante ao de Cascais, que arrancou com o projeto em novembro de 2022? Disse, na altura, que a recolha e reciclagem de cápsulas resultava de mais de uma década de trabalho. Há muito conhecimento da Nestlé incorporado neste processo?

As cápsulas nasceram pela mão da Nestlé, com a Nespresso [fundada em 1986]. As cápsulas revolucionaram a maneira de se beber café. Portugal é o país com mais penetração no mundo nos sistemas de cápsulas. Revolucionaram a maneira como os portugueses consomem café. Os portugueses costumavam ir ao café depois do almoço para beber um bom café, porque era muito difícil um bom café em casa. O interessante nas cápsulas é que é a maneira mais sustentável de se beber café. As pessoas estão muito ligadas ao impacto físico das embalagens, mas o maior impacto carbónico vem do café em si, do grão de café. Num café com cápsula, usa-se 5,5 gramas de café. Numa máquina ou num café, um café precisa entre 8 e 11 gramas. A cápsula é a maneira mais sustentável de se tomar café mesmo que a cápsula não seja reciclável. Mas, sendo a melhor maneira de beber café, também lhe damos um melhor fim de vida. A Nespresso nasceu na Suíça, com um sistema de televenda, e já tinha um sistema de reciclagem da cápsula. Em Portugal, temos sistemas de reciclagem da Nespresso. Se há um estafeta que entrega as cápsulas em casa, porque encomenda pela Internet ou pelo telefone, o cliente entrega as cápsulas ao estafeta. Se for à loja, devolve na loja. A Nescafé Dolce Gusto tem mais de 100 pontos de recolha pelo país inteiro para devolver. Quando era responsável pela Nespresso Portugal, já trabalhávamos no projeto apresentado, mas não é fácil tecnicamente. No final, a Associação Industrial e Comercial do Café (AICC) levou o projeto a cabo. Este é um projeto em que precisamos que todos os produtores de café - os grandes produtores e vendedores de café de cápsula em Portugal - estejam a bordo. Trabalhámos com a AICC e depois com o município de Cascais para esse projeto piloto. Fico muito contente que esse projeto já tenha garantido mais de três toneladas de cápsulas recolhidas, às quais podemos dar uma segunda vida. Estamos agora a expandir o projeto. Os municípios têm demonstrado muito interesse em se juntarem. Fico feliz que, com Guimarães, chegamos ao Norte. Temos um município importante no Sul, Cascais, e agora chegámos a Norte. 

 

Guimarães é então o segundo município no país a adotar o projeto?

É o segundo município no país, até pelo próprio interesse em participar - não fomos nós a empurrar o projeto para quem quer que fosse. Reparámos que Guimarães quis muito participar.

 

Cascais já recolheu mais de três toneladas de cápsulas desde o arranque do projeto de recolha. O que é que se gera a partir dessas quantidades de plástico, alumínio e borras de café recicladas?

A recolha de cápsulas está a aumentar. Nem todas as pessoas conhecem o projeto ao início. Cascais comunicou o projeto e vi que Guimarães está também a fazer uma campanha muito boa de consciencialização dos consumidores. Uma coisa é ter os ecopontos, outra coisa é as pessoas saberem que existem. A borra serve como fertilizante em campos. Dar segunda vida ao café é muito fácil. No caso da Nespresso, temos um projeto de mais de 10 anos, em que toda essa borra vai para campos de arroz em Alcácer do Sal. Com esse arroz cultivado nesses campos, a Nespresso compra a totalidade desse arroz e dá ao Banco Alimentar. Nos últimos 13 anos, a Nespresso comprou 900 toneladas de arroz. São quase 20 milhões de refeições. Então é realmente uma segunda vida. O alumínio é um material infinitamente reciclável. Não o utilizamos para cápsulas. A pegada carbónica de o levar de volta para a Suíça, onde está a fábrica, não vale a pena. Quem recicla o alumínio por nós usa-o muitas vezes em janelas. O plástico, no caso da Nescafé Dolce Gusto, é usado para móveis para parques infantis. Damos uma segunda vida a todos os elementos das cápsulas que chegam.

 

Guimarães tornou-se oficialmente o segundo município a aderir ao projeto da AICC © Miguel Faria/JdG

Guimarães tornou-se oficialmente o segundo município a aderir ao projeto da AICC © Miguel Faria/JdG

 

“Para o ano, espero que tudo o que é produzido na fábrica do Porto seja 100% reciclável”

No Relatório e Contas de 2021, a Nestlé Portugal informou ter reduzido as emissões de dióxido de carbono em 53% no transporte de produtos, aumentando ao mesmo tempo as compras locais. Olhando aos tempos que vivemos, com alterações climáticas, pede-se muita responsabilidade ao consumidor, mas também a multinacionais, entre as quais a Nestlé. Tendo um enorme sistema de produção, espalhado pelo mundo, a pegada carbónica é certamente enorme. O que falta ainda fazer no caso português? 

Temos uma grande responsabilidade. A Nestlé é a maior empresa de alimentos e bebidas no mundo e tem a escala para reduzir a pegada carbónica. Tem a responsabilidade, mas também a escala. Se olharmos para a Nestlé como um todo, 70% da nossa pegada carbónica vem dos ingredientes. As fábricas podem ser mais visíveis nesse sentido, mas a pegada carbónica vem sobretudo do café, do leite, do trigo. A Nestlé está a trabalhar na raiz do problema. As quintas não nos pertencem. São nossas fornecedoras. Mas elas não têm a escala e, às vezes, até o conhecimento sobre sistemas agrícolas regenerativos. Temos agrónomos da Nestlé que visitam essas quintas para as ajudarem a mudar para sistemas agrícolas regenerativos. Isso passa por coisas simples como outras plantas que fazem sombra. Isso reduz o consumo de água, porque a evaporação não é tão rápida. Ou por alternar as plantações para ajudar o solo a regenerar-se. Ou por um produtor de café ter uma colmeia de abelhas que ajuda a fauna. Em Portugal, não compramos cacau, nem café, as duas matérias-primas mais importantes da Nestlé, mas compramos trigo. Compramos em Portugal 40% do trigo que usamos na fábrica de cereais de Avanca, que produz Cerelac, Nestum, Chocapic. Trabalhamos com os agricultores do Alentejo para mudarem para a agricultura regenerativa. A sustentabilidade é um caminho. Até 2026, em Portugal, queremos estar em 80% de agricultura regenerativa. Para já, estamos em 10%. Depois, temos as operações, os escritórios e uma variedade de projetos. Mudámos toda a nossa frota para viaturas elétricas. Não foi tão fácil no começo, porque havia poucos pontos de carga. Mas são as empresas grandes que têm de dar o primeiro passo para incentivar a instalação de pontos de carga. Na produção, temos um projeto para mudar todas as nossas embalagens para prontas a reciclar. Não quer dizer que em Portugal não se possa reciclar. Por exemplo, o lixo orgânico é 100% reciclável, mas não existe em Portugal, a nível nacional, locais de lixo orgânico que permitam aos consumidores colocar as sobras. Se eu espero que o Governo ponha sistemas de reciclagem para todos os materiais e eles dizem que não têm escala, porque não têm os produtos, nós vamos para a frente. Para o ano, espero que tudo o que é produzido na fábrica do Porto seja 100% reciclável. Ao mesmo tempo, colaboramos com a Sociedade Ponto Verde e com os Governos.

 

Nos últimos quatro anos, a Nestlé Portugal investiu quase 300 milhões de euros, em operações, mas sobretudo em marketing e comunicação. Aprofundar a relação com os consumidores portugueses é um dos principais objetivos da empresa?

Portugal é, na Europa, o país com o qual temos a melhor relação com os consumidores. Se olharmos para a reputação que a Nestlé tem nos vários países, Portugal é que tem a melhor reputação na Europa. Não diria que, nestes 100 anos, mudámos drasticamente, mas construímos um relacionamento muito sólido com os consumidores. A Nestlé já faz parte da vida dos portugueses em todos os momentos, desde o café de manhã, ao pequeno-almoço, até ao almoço, ao jantar e também em várias etapas da vida, porque tem vários produtos infantis como o leite em pó e o Cerelac, mas também produtos para envelhecer melhor para pessoas em condições difíceis no nosso segmento de nutrição clínica e saudável.

 

A Nestlé Portugal desdobra-se por duas fábricas – Infesta (Matosinhos) e Avanca -, um campus em Linda-a-Velha (Oeiras) e seis delegações. Há algo que ainda falte à Nestlé Portugal a nível de infraestruturas?

Em Linda-a-Velha, temos o primeiro e o único prédio certificado LEED [Leadership in Energy and Environmental Design], a nível de sustentabilidade, relacionado com edifícios recuperados. Existem outros, mas construídos de raiz. O nosso é antigo, onde estava a antiga fábrica da Tofa. Fizemos uma remodelação total, entre 2020 e 2021, pensando num edifício sustentável, com painéis solares, com controlo de temperatura e luz. Quando as pessoas não estão na sala de reuniões, apaga-se todo o consumo energético. Temos uns biorreatores de alga para purificar o ar com algas que absorvem o CO2. Com estes elementos, temos um dos escritórios mais bem certificados ao nível do país. Temos a única certificação WELL Platina do universo Nestlé, virado para o bem-estar dos colaboradores. É o único edifício recuperado na Europa com as duas certificações.

 

E pensam expandir as instalações?

Não pensamos em novos locais. Além dos locais mencionados, temos mais de 20 lojas Nespresso. O nosso investimento é contínuo. O investimento nas operações está sobretudo virado para a redução de consumo de água e de energia. Fizemos também uma candidatura ao PRR para uma bomba de calor que usa a energia do primeiro passo de produção no segundo passo. Estamos a fazer esse trabalho há mais de uma década. Em cada mudança das operações, reduzimos consumo energético e consumo de água. O investimento em Avanca está voltado para uma linha de produção de última geração.

 

No ano em que se assinala o centenário da Nestlé, há outros objetivos delineados, além dos já mencionados?

A sustentabilidade é um dos assuntos mais urgentes da sociedade. Tendo o setor alimentar um grande impacto nos gases de estufa, essa tem de ser a nossa prioridade. Publicamos no relatório de gestão a pegada que temos e onde temos de melhorar para chegarmos à neutralidade carbónica em 2050. Como isso está muito longe, temos o objetivo de reduzir até metade a pegada carbónica até 2030, algo que não é tão distante. A Nestlé já atingiu o carbon peak [pico de carbono], entre 2018 e 2019. Desde então, continuámos a crescer em volume absoluto de negócios, mas a reduzir a pegada. É difícil medir isso só num país, porque exportamos parte do nosso volume e importamos outros produtos da Nestlé. 70% do impacto da Nestlé está fora das nossas atividades: estão quer na produção de matéria-prima e uma parte no consumidor final. Temos de fazer um esforço interno, mas também externo.

 

Anna Lenz tornou-se na primeira mulher CEO da Nestlé Portugal a 01 de julho de 2022

Anna Lenz tornou-se na primeira mulher CEO da Nestlé Portugal a 01 de julho de 2022

 

“Os jovens, por vezes, estão demasiado focados e podem perder oportunidades”

A 01 de julho de 2022, a Anna tornou-se na primeira mulher a assumir a função de CEO da Nestlé Portugal. A circunstância tem causado impacto no dia a dia da empresa. Tem recebido feedback dos trabalhadores quanto a diferenças face às anteriores lideranças?

O impacto foi mais externo do que interno. Foi uma mensagem, como é óbvio. É verdade que nunca tivemos uma CEO mulher, mas, se olharmos para a linha de chefia, temos hoje 52% de mulheres e 48% de homens. Se olharmos para toda a empresa, temos quase 50% de homens e 50% de mulheres. Já é assim há muito tempo. Também nos certificamos todos os anos que não há pay gap entre homens e mulheres. Já trabalhei em vários países. O grande desafio é que os diretores dos países todos são pessoas com alta mobilidade. Trocam de país em três a cinco anos. Muitas vezes, é mais difícil termos mulheres nesses cargos, porque temos mais vezes carreiras duais. Da experiência que tenho, essa é a parte mais complicada quando se tenta promover mulheres. O que define o meu estilo de liderança está além do facto de ser mulher. Trabalho na Nestlé há quase 20 anos e nunca senti discriminação. Lembro-me que, uma vez, me queriam promover e disse que estava grávida de dois meses do meu segundo filho. A chefia, o CEO do Nespresso na época, disse-me: "O que é que isso muda?". Ele nem entendia o porquê de eu mencionar isso. Quando estive de licença de maternidade, recebi os aumentos dos salários, como sempre. Claro que me tenho de entregar da mesma maneira ao trabalho. Tenho de arranjar soluções para reconciliar as vidas: a maternidade e o trabalho.

 

A Anna formou-se em Matemática Teórica, mas trabalhava enquanto estudava. Algum desse conhecimento prático adquiriu-o quando era bartender. A Anna parece ter uma experiência de vida na qual conjuga coisas aparentemente muito diferentes. Crê que essa multidisciplinaridade influencia a forma como lidera no dia a dia? Vê essa característica como importante para qualquer CEO ser melhor?

Não sei se ajuda a ser melhor. Cada um tem um histórico diferente. Eu sempre trabalhei. Não vim de nenhuma família rica. Não tive nenhuma vantagem familiar para chegar onde estou, porque ninguém da minha família trabalhou na Nestlé. A experiência de ter sempre de pagar as contas e de trabalhar durante os estudos me ajudou, apesar dos muitos benefícios, porque a vida na Suíça como estudante é mais fácil, até pelos salários serem mais altos. Trabalhar num bar deu-me conhecimento. Depois, tenho pessoas que me ajudam. Não sou portuguesa. E tenho pessoas que me corrigem, a dizer que, em Portugal, não se faz assim. Para mim, Portugal é muito formal. Tento dar alguma informalidade no trabalho: trato toda a gente por tu e sento-me num espaço aberto, não num gabinete fechado. É algo muito cultural meu. Mas também é importante ter alguém a ajudar-me, porque, por vezes, há mensagens culturais que não apanho. Quanto à matemática, nunca uso nada que aprendi de técnico. A matemática é bastante complexa e deu-me capacidade de simplificar e de ser pragmática.

 

Face ao percurso até agora traçou, daria algum conselho a jovens mulheres em início de carreira que aspirem a funções de liderança – e a homens, já agora?

No meu caso, é não fazer planos de carreira. Nunca soube o que queria ser enquanto adulta. Ainda hoje, não sei o que quero ser quando for crescida. Quando se tem um plano de carreira muito fechado, perdem-se muitas oportunidades. Uma pessoa deve fazer um quadro no qual inclui os seus valores, os seus limites. No meu caso, quero trabalhar com pessoas, não quero fazer pesquisa num gabinete fechado. Isso sempre foi claro para mim. Depois é uma questão de aproveitar as oportunidades e não se fechar. Quando fazia matemática teórica, não tinha ideias do que ia fazer com aquilo, mas gostava muito de o fazer. Quando me juntei à Nestlé, juntei-me para um trabalho internacional, onde não se morava em lugar nenhum. Visitava-se as várias operações durante quatro anos. Fazia isso, porque queria viajar. No meu tempo, não era tão fácil. Depois vieram as oportunidades: por vezes, dizia que as queria; noutras não queria. Os jovens, por vezes, estão demasiado focados e podem perder oportunidades. Mas tenho limites. Tenho três crianças pequenas e um dos meus filhos tem necessidades especiais. Não vou para lugares sem as infraestruturas necessárias para a minha família estar bem. Isso pode-me limitar a carreira, mas não me separo da família. Posso-me separar por dois ou três meses. Cada um deve saber os seus limites e até onde está disposto a ir pela sua carreira.

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