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"Devemos levar a sério o reconhecimento facial e o 'autoritarismo digital'"

Redação
Sociedade \ segunda-feira, novembro 04, 2024
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É uma das mais destacadas investigadoras mundiais no campo da interação entre ciência, tecnologia e sociedade. A vimaranense Helena Machado, 54 anos, é Professora Catedrática de Sociologia na UMinho

É uma das mais destacadas investigadoras mundiais no campo da interação entre ciência, tecnologia e sociedade. A vimaranense Helena Cristina Ferreira Machado, Professora Catedrática de Sociologia, 54 anos, é professora na Universidade do Minho e investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), destacando-se, também, pela confiança conquistada junto das principais agências de financiamento de ciência. Recentemente, o European Research Council (ERC) atribuiu-lhe 2,4 milhões de euros para estudar os impactos políticos, éticos e sociais que as tecnologias de reconhecimento facial exercem sobre a cidadania e a privacidade. Em entrevista exclusiva a O Conquistador, Helena Machado aborda este e outros assuntos, como Guimarães, terra que “deu um salto notável nos últimos dez anos”, na sua opinião, fruto do “legado da Capital Europeia da Cultura” que impulsionou “áreas como a música e o teatro”.

 

ENTREVISTA E FOTOS: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva

 

Vive-se um encanto, quase adoração religiosa, com as maravilhas da tecnologia que parece anular a vontade dos indivíduos. Pode-se recuperar a noção de “alienação” quanto ao papel atual da tecnologia?

Certamente, podemos observar uma relação complexa entre a tecnologia e a perceção que temos dela, quase como um culto, que pode, de facto, levar à alienação dos indivíduos. A ideia de "sublime tecnológico", que remonta ao século XIX, quando obras de engenharia como os caminhos de ferro começaram a ser vistas como maravilhas, demonstra como esta reverência evoluiu. O sublime, que antes estava associado aos fenómenos naturais, passou a estar ligado ao progresso tecnológico, ofuscando os seus problemas e contradições.

 

Qual o papel da Inteligência Artificial (IA) no meio disto tudo?

Hoje, essa adoração pela tecnologia, especialmente em relação à IA, está profundamente enraizada nas narrativas de modernidade e progresso. Frequentemente ouvimos que a tecnologia é um meio para a inovação de mercado e a engenharia social, projetando visões de um futuro idealizado. No entanto, é crucial questionar quem realmente beneficia dessas narrativas. Quem fica à margem, silenciado ou invisibilizado? Estas questões são essenciais, pois a construção das expectativas sobre a IA e as promessas de transformação social não são neutras.

 

E é a tecnologia a salvação do mundo?

A retórica em torno da IA tende a concentrar-se num futuro otimista, onde a tecnologia promete resolver problemas complexos da sociedade. No entanto, essa visão muitas vezes ignora as desigualdades que podem ser exacerbadas por essas inovações. Os cenários futuros projetados frequentemente desconsideram as vozes dos mais vulneráveis, perpetuando uma forma de alienação. Assim, ao celebrarmos os avanços tecnológicos, é fundamental manter um olhar crítico sobre as suas implicações e garantir que as narrativas sobre o futuro sejam inclusivas e representativas de toda a sociedade.

As ciências sociais parecem estar a falhar na compreensão destes tempos “pós-pós-modernos” em que a “ação social” é substituída pela “ação algorítmica”. O que falha? É assim ou trata-se de uma sensação errada?

 

Talvez seja necessário reavaliar os nossos pressupostos sobre o que significa ser social, sobre o comportamento, a ação humana e a ação das máquinas. Mais importante ainda, devemos investigar como e por que a sociedade considera que o comportamento humano se distingue do desempenho de uma máquina, assim como as implicações dessa distinção. Em 1985, o sociólogo Steve Woolgar já alertava para a necessidade de a Sociologia proteger-se dos riscos de ver a sua abordagem cooptada pelo discurso dos desenvolvedores e comercializadores de IA – os chamados "peritos" ou "especialistas" – que frequentemente se arrogam o direito exclusivo de discutir a IA e as suas consequências sociais e éticas.

 

A Sociologia tem a particularidade de se discutir e renovar-se permanentemente. Num mundo cada vez mais pluridisciplinar, que transformações advoga quanto ao papel dos sociólogos?

A Sociologia possui teorias e métodos que são especialmente vocacionados para analisar as grandes transformações sociais e compreender as suas causas. Além disso, conta com uma longa tradição de reflexão crítica que nos permite questionar as noções de senso comum que frequentemente são perpetuadas pelos meios de comunicação e pelos governos. Isso confere aos sociólogos uma grande capacidade de colaborar em equipas pluridisciplinares, mantendo sempre a curiosidade e a atenção aos fenómenos sociais emergentes…

 

O que lhe impõe um papel para estes tempos…

Uma área em que os sociólogos podem fazer uma diferença significativa é na análise crítica das transformações radicais provocadas pela IA. Isso inclui impactos em setores como o trabalho, a saúde, a educação, e a justiça e segurança. Em breve, publicarei um livro, em co-autoria com a socióloga Susana Silva, que aborda os grandes desafios sociais e éticos da IA. Estamos a dar os primeiros passos para desenvolver uma “Sociologia da IA” em Portugal, que será fundamental para entender e abordar essas questões complexas.

 

Obteve, recentemente, uma bolsa avançada de 2,46 milhões de euros atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação, o que é muito raro, tanto para Portugal como para Sociologia. E é a segunda vez que consegue uma bolsa do European Research Council (ERC)…

Portugal tem muitos investigadores de grande talento, o que torna um pouco surpreendente o facto de não vermos mais bolsas atribuídas pelo Conselho Europeu de Investigação. É possível que as instituições nem sempre incentivem candidaturas a este nível de exigência e competitividade, ou que nem sempre ofereçam as condições ideais para que isso aconteça. É uma oportunidade perdida, uma vez que, a nível europeu, as bolsas do ERC funcionam como um verdadeiro "selo de excelência" para as universidades.

 

Qual o segredo para alcançar financiamentos de tal monta?

O segredo pode estar na capacidade de arriscar e de ultrapassar a zona de conforto. Muitas vezes, projetos inovadores e de grande impacto surgem precisamente quando os investigadores se sentem desafiados a explorar novas áreas ou abordagens, em vez de seguirem caminhos mais seguros e convencionais. As candidaturas ao Conselho Europeu de Investigação exigem essa ousadia – são altamente competitivas e procuram ideias disruptivas, que tragam avanços significativos no conhecimento. Portanto, é essencial que os investigadores se sintam apoiados e encorajados a propor projetos ambiciosos, mesmo que envolvam algum grau de risco. É essa capacidade de inovar e de pensar além do habitual que pode ser a chave para conquistar mais bolsas ERC e, ao mesmo tempo, projetar as instituições portuguesas no mapa da excelência científica internacional.

O seu projeto visa estudar os impactos políticos, éticos e sociais que as tecnologias de reconhecimento facial exercem sobre a cidadania e a privacidade. Acha que devem ser impostas limitações ao uso da tecnologia?

As preocupações com o reconhecimento facial, e o seu possível uso para criar o que alguns chamam de "autoritarismo digital", devem ser levadas muito a sério, especialmente quando estão em causa as liberdades e a democracia. É claro que, nestes casos, temos de impor limites. Contudo, existem visões muito diferentes sobre esta tecnologia. Os seus promotores destacam benefícios como a maior eficácia em segurança, identificação, ou até em áreas como saúde mental e diagnósticos médicos. No entanto, a proliferação do reconhecimento facial levanta preocupações entre ativistas e especialistas, especialmente no que toca à vigilância em massa, à privacidade e aos direitos humanos. Também há questões sobre discriminação, uma vez que estas tecnologias tendem a falhar mais com grupos que não se encaixam no modelo de treino padrão, como comunidades vulneráveis. O projeto que vamos desenvolver pretende ouvir diferentes perspetivas — de cientistas, empresários, a ativistas, artistas e comunidades marginalizadas — para compreender o que realmente importa e porquê.

 

Para quem vive em Guimarães, como classifica o concelho em termos de evolução socioeconómica?

Nos últimos dez anos, Guimarães deu um salto notável em termos culturais e na valorização do seu património histórico. O legado da Capital Europeia da Cultura é evidente, tendo impulsionado áreas como a música e o teatro. Hoje, a cidade tem uma oferta cultural intensa e diversificada, com uma cena musical vibrante, que abrange vários estilos. Além disso, é claro que houve uma mudança significativa nos costumes, tornando-se uma cidade mais aberta e tolerante à diversidade. Creio que o aumento de estudantes universitários, uma maior escolarização e a chegada de emigrantes contribuíram para esse progresso.

 

O que é necessário para que Guimarães suba nos índices de desenvolvimento ?

Embora as questões de desenvolvimento saiam da minha área de especialização, ao refletir sobre os principais desafios que as sociedades enfrentam hoje, acredito que uma aposta mais forte e arrojada na sustentabilidade ambiental e numa cidade centrada nas pessoas seria crucial e não apenas tentativas fragmentadas e tímidas. Isso implicaria menos carros, mais ruas pedonais, e campanhas públicas para um maior contacto com a natureza e melhor aproveitamento dos espaços verdes da cidade. Para impulsionar o desenvolvimento social, seria ainda necessário investir mais no apoio à população idosa, pessoas com deficiências e pessoas afetadas pelo isolamento. Outro aspeto fundamental seria a criação de infraestruturas desportivas acessíveis, para todos os cidadãos, promovendo as diferentes modalidades desportivas de forma mais equitativa.

Além disso, e pensando mais na vertente económica do desenvolvimento, a região ainda é muito marcada por uma tradição industrial de baixos salários e uma mentalidade limitada no que toca ao investimento empresarial com potencial de impacto real e orientado para redistribuição de lucros.

 

A imagem do intelectual, geralmente, não combina com a de desportista. Em si parece não ser assim …

 

Durante a infância e juventude, não pratiquei desporto, talvez por preferir atividades intelectuais (ler e escrever) e criativas (desenho e pintura). Comecei mais tarde no desporto: agora pratico ténis e yoga de forma muito regular. Acho que o desporto é crucial para a clareza mental e o bem-estar, que considero fundamentais para um bom desempenho em atividades intelectuais.

 

É uma pessoa de fé?

Agnóstica.

 

Existe alguma figura da Igreja Católica que mais a tenha marcado e tenha influenciado o seu quotidiano?

Não.

"5 respostas rápidas"
  1. Sugestão gastronómica?

Sushi no Ikigai Omakase do João Vitorino

 

  1. Que livro está a ler?

Atlas da IA, da Kate Crawford (Relógio D’Água)

 

  1. A música que não lhe sai da cabeça?

Vai variando. Neste momento talvez o tema da banda Inglesa Radiohead “Paranoid Android”

 

  1. Um filme de referência?

“Matrix”

 

  1. Passatempo preferido?

Jogar ténis

Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de novembro de 2024 do Jornal O Conquistador.]

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