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Lino Moreira da Silva: "Deixou de se falar em Unesco e Festas Nicolinas"

Redação
Cultura \ quarta-feira, dezembro 11, 2024
© Direitos reservados
ENTREVISTA Lino Moreira da Silva, o académico que mais se tem dedicado ao estudo das Nicolinas.

Em tempo do ribombar de bombos e do cantabrilhar das caixas, quisemos saber do estado geral das festas a São Nicolau, padroeiro dos Estudantes. Sobre a sua ideia de se candidatar as Nicolinas a património da Unesco, o vimaranense Lino Moreira da Silva, o académico que mais se tem dedicado ao estudo das Nicolinas, manifesta reservas em relação ao estudo “encomendado” pela Câmara Municipal de Guimarães, sobre Festas Nicolinas, e chama a atenção para a influência negativa que podem exercer “intromissões abusivas”, sobre elas, ao que Novos e Velhos Nicolinos deverão responder com consistente “formação Nicolina”. Considera “inconcebível” a exclusão das mulheres da Comissão de Festas e critica as praxes “ocultas, abusivas, desviantes”, que “nada têm de tradição nicolina”.  Tudo isto, entre outros aspetos, em entrevista a O Conquistador.

 

ENTREVISTA: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva

 

Em 2005 partiu de si a ideia de se candidatar as Festas Nicolinas a “Património Oral e Imaterial da Humanidade”. Continua a achar esse reconhecimento importante ?

Sem dúvida que sim. A aceitação das Festas Nicolinas (FN), pela Unesco, apresenta-se com a tripla expectativa de ela as reconhecer, divulgar e preservar. As FN são festas académicas únicas e irrepetidas, fazem parte da identidade cultural de Guimarães, e, por aquilo que são e representam, merecem esse reconhecimento. Têm estado sujeitas a muitas pressões, com origem interna e externa, até de dentro do próprio meio nicolino, por vezes devido à falta de verdadeira ‘formação nicolina’. Recordo, por exemplo, a telenovela da TVI, “Valor da Vida”, muito vista, que tratou, sem o devido rigor, as FN. Ultimamente, as FN têm servido de tema para trabalhos ditos ‘académicos’, entre os quais aparecem alguns com desvirtuamentos e erros profundos, que ninguém corrige. Esses trabalhos concedem graus, aparentam credibilidade, e são colocados, ‘toxicamente’, na internet, podendo acabar por interferir no essencial das FN. As próprias ‘práticas’ nicolinas, alteradas da tradição (por exemplo, certas ditas ‘praxes’, que as FN nunca tiveram), podem conduzir ao mesmo. São perigos a que o reconhecimento, pela Unesco, ajudará a resistir.

 

É autor de um dos raros livros sobre as Festas (Guimarães e as Festas Nicolinas, 1991). Ainda admite, como referiu em 2005, que as Nicolinas estão “em perigo de preservação” e padecem de “atentados contra a sua mais profunda razão de ser” que “tendem a corromper a verdade das Festas” ?

Esse perigo é real e objetivo. Ser Nicolino vai muito para além de usar lenço tabaqueiro e zabumbar num bombo ou numa caixa. As FN são complexas, assentam em práticas e rituais estabelecidos, mas também em valores académicos, socioculturais e humanos. Aí reside boa parte da sua especificidade e valor. Os Velhos Nicolinos têm o dever de o transmitir aos Novos. Esse entendimento e modos de agir fazem parte da essência das FN, que estão em perigo. Sem eles, as FN deixarão de ser o que são, banalizando-se e transformando-se noutra realidade diferente.

 

O antropólogo Jean-Yves Durand, num estudo encomendado pela autarquia, revelou-se cético em relação à candidatura apontando, por exemplo, o consumo excessivo de álcool, as praxes e a exclusão das mulheres da Comissão de Festas como obstáculos. Concorda ?

Já me pronunciei, sobre esse ‘estudo’, num artigo que está disponível na internet. A Câmara Municipal (CMG), que noutros contextos, a este nível, tem mostrado um desempenho sensato e exemplar, ao promovê-lo, agiu de modo irrefletido, e o resultado final não responde ao que dele era esperado: levar quem não conhece as FN, nomeadamente a Unesco, a reparar nelas, a compreendê-las e a aceitá-las. Nem o grupo de professores respeitados, que elaborou o ‘estudo’, deve ter ficado muito satisfeito com ele. Nunca compreendi por que razão o ‘estudo’ tinha de ser ‘antropológico’, como nunca compreendi por que foi feita a ‘encomenda’ a alguém ‘escolhido’, como nunca compreendi como se entregaram, diretamente, 50 mil euros (que fizeram falta à cultura local), sem se ponderar e acompanhar o retorno a receber, e sem se ‘avaliar’ o que foi recebido. O certo é que, de repente, deixou de se falar em Unesco e Festas Nicolinas. Era isto que se pretendia? De minha parte, e sem imodéstia alguma, também não compreendi por que, sem qualquer explicação, não foi atendido o meu currículo em FN (reflexão, investigação, participação, intervenção, associativismo e atividade nicolina, conhecimento nicolino acumulado, livros e artigos publicados), e não fui convidado, ‘com outros’, a dar o meu contributo, modesto, mas muito empenhado, para qualquer ‘estudo’. Isto com a circunstância de ter ideias bem claras, para partilhar, sobre ele, e não ‘cobrar’ um único cêntimo, à CMG, como nunca ‘cobrei’, nas muitas colaborações que já tive com ela.

 

E o consumo excessivo de álcool?

Quanto ao excesso de ‘álcool’, não é um problema ‘específico’ das FN, é um problema ‘nacional’. Ainda há dias foi conhecido o resultado de um inquérito, do ICAD (2023), que dizia que “mais de 80 % dos jovens já beberam álcool” e que “os problemas ligados a consumos aumentam” (PU e JN, 20.11.2024). O que se faz para ‘prevenir’ e resolver isto? Está-se a querer atirar para cima das FN um problema que não é ‘específico’ seu, deixando esquecido o que, verdadeiramente, estas festas são: as suas origens, as suas especificidades, as suas influências, a sua história, a sua evolução, a sua beleza, os seus preciosos Números, as suas temáticas, os seus símbolos, a sua casuística, os seus valores, a sua popularidade... Se não há intenção de destruir as FN, assim parece. Sem dúvida que os excessos de álcool têm de ser ‘todos’ combatidos, sobretudo entre Nicolinos menores de idade. Mas apesar do que se diz, verifique-se como, nas FN, os casos excessivos que há são, percentualmente, muito residuais. E até a Unesco tem reconhecido realizações culturais que envolvem recurso ao ‘álcool’, não as anulando, apesar disso. Quanto às ‘praxes’ que se praticam (ocultas, abusivas, desviantes, que NADA têm de tradição nicolina), e à não inclusão das ‘mulheres’ em TODAS as realizações verdadeiramente nicolinas, nomeadamente a Comissão de Festas, é inconcebível que isso ainda não tenha sido corrigido.

 

Um eventual reconhecimento internacional das Nicolinas não poderia conduzir a um “excesso de fama” e até a uma hipotética necessidade de “municipalizar” a organização para corresponder às exigências da classificação ?

Claro que devem ser tidos alguns cuidados. Já tivemos a experiência da intervenção da Universidade do Minho nas FN, que correu muito mal, e foi abandonada. Quanto à “fama”, cada um toma a que quer, e o bom senso (com ‘formação nicolina’...) terá de prevalecer, como em tudo. Não me parece que haja nada a ‘municipalizar’. Há burocracias a cumprir, e nisso a CMG será um bom parceiro e colaborador, mas as FN nunca deixarão de pertencer aos Nicolinos e a Guimarães.

 

Em 2024, que consequências encontra no efeito Capital Europeia da Cultura de 2012?

Acho que esse ‘efeito da CEC 2012’, para Guimarães, naquilo que era mais relevante, uma cultura sustentada, efetiva, para todos, não aconteceu. Realizaram-se uns espetáculos, e gastou-se muito dinheiro, ficando-se, em grande medida, pelo lado material. Destruiu-se (‘cientificamente’) o Toural e parte da Alameda. De uma penada, fez-se tábua rasa de importantes símbolos da identidade vimaranense, que foram substituídos por referências que, existindo lá fora, também se quis que existissem cá. O ‘verdadeiramente’ cultural que tocasse ‘verdadeiramente’ o quotidiano das pessoas ficou por concretizar. O ‘modelo’ das CECs, como está a ser praticado, deveria ser revisto, nestes pontos.

 

Fala-se muito em “produção de conhecimento” em Guimarães. Em que atividades podemos encontrar esse “conhecimento”?

Não saindo da dimensão cultural imaterial sobre que sou convidado a pronunciar-me, direi que uma cidade/concelho tão histórica, como Guimarães, não pode dispensar essa procura constante de conhecimento, sobre si e sobre o que é seu. Cabe às instituições de Guimarães promovê-lo, tendo à cabeça a CMG. Ou o promove diretamente, ou apoia quem o faz. A este nível, existe, e muito bem, um programa de ‘Apoio à Atividade Editorial’, só que não funciona, para todos. Importa saber como são, ‘efetivamente’, feitas as ‘escolhas’, até para não se cair em situações caricatas, em que eu mesmo, julgo que sem o merecer, já me vi envolvido. Sobretudo, é preciso encontrar formas de ir ao encontro das pessoas, não ficar, simplesmente, à espera delas, e comprometê-las com essa procura de conhecimento sobre Guimarães.

 

Pode-se inscrever o turismo de massas atual como algo pernicioso para a preservação cultural, ou deve-se glorificar o turismo como expressão do interesse pela cultura de um local/região?

O turismo é um direito das pessoas, valoriza-as, como às regiões visitadas, desenvolve a economia, promove a interação humana e a paz. Mas exige certos cuidados. Já há cidades mundiais a limitar o fluxo turístico, dentro das suas portas, porque o turismo sem critérios acaba por ser pernicioso para todos. A ânsia de arrecadar ‘taxas turísticas’, diretas e indiretas, não pode justificar tudo. Há profundas reflexões a fazer, entre elas sobre a relação custo benefício, e até consequências, no turismo de massas, e proceder a regulamentações seguras a aplicar. Guimarães tornou-se num destino turístico relevante, mas é preciso conhecer o que beneficiamos, ou não, com isso, e o que quem nos visita recebe, igualmente, de nós. Na parte cultural, e não só, importará combater o ‘túnel de corrida turística’ que se instituiu, entre o Castelo e o Campo da Feira, pensar na ‘dinamização permanente’ dos espaços mais turísticos da cidade, sinalizar, claramente, o que de mais relevante temos para ser visitado, corrigir as ‘placas toponímicas’ existentes, no que muitas têm de errado, e acrescentar outras, em falta... e (acho mesmo) procurar combater a ‘infernização’ em que se tornaram os guias turísticos, na cidade, muitos dos quais ‘vendem’ aos ‘seus’ turistas uma Guimarães imaginada, que nem eles sabem onde esteve ou está.

 

Que tema ainda não publicado gostaria de tratar em livro ?

Apesar de patrimonialmente muito estragada, Guimarães ainda é uma cidade/concelho extremamente rica em património material e imaterial. O material vai-se acomodando, às vezes muito mal, mas para ali fica, ‘sossegadinho’. O imaterial, tem de ser continuamente revisitado. Publiquei o livro “São Nicolau, a sua Irmandade e a sua Capela...” (1994), e gostaria de continuar o tema. Publiquei o livro “Os Largos da Misericórdia e de João Franco, em Guimarães” (2015), e gostaria de me ocupar de outras realidades semelhantes, como o Toural (o velho e o novo) e o Largo da Oliveira, cujos estudos estão ‘absolutamente’ por atualizar. Publiquei o livro “As Imagens de Nossa Senhora da Penha, Guimarães. Dicionário da Penha” (2020), e gostaria de me ocupar do Santuário de São Torcato e do Mosteiro da Costa, que precisam de monografias sérias’. Tenho pesquisas adiantadas, sobre isso, mas não o farei. Deixo as sugestões para quem o faça, de modo honesto, dedicado e competente, como Guimarães merece.

Tem prevista a edição de mais alguma publicação ?

Sim. Estou a acabar de escrever um ‘último’ livro, sobre Guimarães, que será o meu ‘último’ contributo para um melhor conhecimento sobre a nossa cidade/concelho. Sendo mesmo o ‘último’, terei o maior gosto em oferecê-lo à nossa primeira entidade cultural, que é a CMG, lembrando-lhe que é preciso orientar umas migalhinhas do PRR para este tipo de cultura, e valorizá-lo mais. A economia é muito importante, mas a cultura também é. De minha parte, não tenho ilusões sobre que a atual CMG não valoriza os meus trabalhos. Mas irá receber mais este, que será modesto, mas fundamentado, rigoroso, e preocupado com ser útil para Guimarães, como todos os meus trabalhos anteriores. São caraterísticas que, tenho de o dizer, nem sempre se encontram em trabalhos que a mesma CMG tem apoiado e promovido. Só ela poderá dizer porquê.

 

É uma pessoa de fé?

A pergunta é extremamente pessoal, mas respondo. Entendo esse “ser de fé” como “ser religioso”. Lembro José Régio, que dizia o mesmo. Sou “uma pessoa de fé”, à minha maneira. Dizia Santo Agostinho que todo o ser humano anseia pelo absoluto. As dificuldades surgem quando se reduz, indevidamente, a religiosidade e a fé às religiões concretas. “Todas as religiões são boas para chegar a Deus”, foi um valioso princípio saído do Vaticano II. É uma frase muito inspiradora, que, se fosse praticada, anularia todos os ódios e todas as guerras (especialmente as religiosas) que destroem o mundo. De minha parte, a ‘fé’ de que falo sai reforçada com a devoção especial que tenho por “Nossa Senhora da Penha”, como deixei bem claro no meu livro de 2020.

 

Existe alguma figura da Igreja Católica que mais tenha influenciado o seu quotidiano?

Aprecio muito o estilo humanista do papa Francisco, como apreciei o estilo ‘político’, que remexeu o mundo, de João Paulo II. Mas aprecio, igualmente, o estilo reservado do Papa Bento XVI. Sei que nem todos o verão assim, porque ele, sobretudo com os rigores do Catecismo e das excomunhões, em que, talvez excessivamente, se envolveu, deu de si mesmo uma imagem de inflexibilidade. Mas analisando-o melhor, acaba-se por encará-lo de outro modo. Os procedimentos da Igreja têm de se pautar por um equilíbrio entre o ir à frente e o vir atrás, ao ritmo do mundo. Ratzinger via a humanidade a caminhar para a desestabilização, o que não a conduziria, como não está a conduzir, no melhor sentido. A Igreja não podia acompanhá-la, nesse procedimento. Por isso, recorreu a um conceito pouco falado, dele, que é o da ‘Igreja Santa de Deus’. Nenhuma ‘evolução’, na Igreja, seja a que nível for, pode acontecer desligada dessa referência. Tal desequilíbrio ainda não se resolveu, e estará, até, mais agudo. Vamos chegar a um certo momento em que terá de ser corrigido, dando-se razão a esse Papa, talvez com recurso ao que, do grande Concílio Vaticano II, ainda não foi, ou foi mal concretizado.

“5 respostas rápidas”
  1. Sugestão gastronómica?

Sugiro a ementa do Jantar do Pinheiro, das Nicolinas de 1895, servido no ‘Fraga do Cano’, muito próxima da que hoje é, acompanhada por um inspirador ‘Copo Nicolino’ (quem falou de ‘bebedeiras nicolinas’?), na companhia da família e dos amigos de coração.

 

  1. Que livro está a ler?

Estou a ‘reler’ as biografias camonianas de Manuel Faria e Sousa (1639 e 1685), e a ‘ler’ a ‘Crónica do Rei Pasmado’, de Gonzalo Torrente Ballester.

 

  1. A música que não lhe sai da cabeça?

O final da 9ª sinfonia, de Beethoven, um hino à alegria e à paz. A canção ‘Romaria’, de Renato Teixeira, sobre o reencontro dos deserdados da vida consigo mesmos.

 

  1. Um filme de referência?

‘Casablanca’, de Michael Curtiz (1942), um ‘preto e branco’ pleno de ‘avisos’ e emoções.

 

  1. Passatempo preferido?

A leitura. No desporto, o bilhar.

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de dezembro de 2024 do Jornal O Conquistador.]

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