De Passinhos de Cima, com amor: um documentário que “vagueia pelo mundo”
“Quem é esta menina, que está a fazer a esta menina?”. Abrigada num alpendre, Ana Madureira faz a pergunta à irmã Glória. A “menina” é Cláudia Ribeiro, realizadora que passou sete meses no lugar de Passinhos de Cima, em Marco de Canaveses, entre Douro e Tâmega, a documentar uma realidade “que faz falta no cinema português”. A estada resultou na primeira longa-metragem da vimaranense – Entre Leiras, “que anda por aí, a vaguear pelo mundo” em festivais e mostras de latitudes díspares – e numa cumplicidade crescente entre as irmãs e Cláudia, transformada em amizade. Essa relação, o apego entre realizadora e irmãs está patente nos 80 minutos de película.
O momento em que Ana dá conta de Cláudia acontece logo no início do filme. A nébula diz-nos que estamos numa encosta, o carrinho de mão e o material de lavoura dão pistas para o que se segue. “A primeira base era acompanhar o ciclo agrícola com alguém e filmar o que surgisse, sem nenhuma preparação e nenhuma ideia de manipular o que quer que seja”, resume Cláudia. O local – “lindíssimo” – conheceu-o por intermédio de um amigo; o resto (quase) não foi planeado. “Muitas das vezes eu estava a filmar e entrava em plano. A única coisa que planeei foi a minha chegada, o resto fugiu e elas dirigiram”.
Para este momento de “chegada” foi importante ir buscar conhecimentos às ciências sociais. Natural de Silvares, tirou o curso de Cinema na Universidade da Beira Interior e um mestrado em Antropologia em Culturas Visuais na Universidade Nova de Lisboa. “Achei que [o mestrado] me ia dar coisas que o cinema não me tinha dado, esta questão de lidar com o outro e todas as questões de filmar o real. Isso vai da forma como se chega ao local à forma como se diz o que se quer fazer”, explica.
“Os maiores cientistas somos nós”
E Cláudia quando se acerca da dona Glória “chega com tudo” – este “tudo” é uma câmara, um tripé, um gravador de som e auscultadores. “Não houve o choque inicial, aquilo fazia parte de mim”. E a partir daí foi documentar. “Limitei-me a filmar o que ia acontecer sem saber para onde iam, o que iam dizer, fazer. Nunca pedi para repetirem, nunca dirigi uma conversa. Tudo foi surgindo naturalmente e, claro, pelo facto de estar a filmar”, refere.
Cláudia não queria a visão romantizada e pitoresca da “vida de campo”. A labuta é documentada e a auto-reflexão também. No decorrer do filme as duas irmãs apercebem-se que “alguém” vai ver “como existem”. Exemplo? Um plano enquadra Glória e Ana enquanto encabam cebolas e as mãos, num movimento mecânico, retiram folhagem; uma das irmãs diz: “Acho que os maiores cientistas somos nós” – nós, agricultores. “Essa conversa surge porque estou a filmar. É um defender perante um público que poderá fazer achismos”, diz a realizadora. “Era inevitável questionarem-se a elas próprias. Foi um processo muito duro. Para elas e para mim”, assinala.
Ao fim de sete meses, Cláudia partiu. “São as minhas senhoras, foi muito duro sair de lá”. Mas o contacto mantém-se e Passinhos de Cima não é só miragem no retrovisor. É local a regressar. Afinal, “há muito amor” neste filme e Ana e Glória também “têm muito amor para dar”.