Da Síria para Guimarães, um bilhete para a liberdade
Vê-se muito pouco, e cada vez menos, por entre o pó que se esfuma das ruas, casas e artefactos destruídos que outrora faziam parte da cidade de Aleppo, na Síria. Já o barulho pode ser fortemente audível. Estrondos obrigam os residentes da cidade a recolher-se em pisos subterrâneos para se protegerem da desgraça que a guerra cria. “Em 2013 eu estava a andar pela cidade quando um avião russo largou bombas à minha frente. Se eu estivesse 20 metros à frente, já não estava aqui. Enquanto ouvíssemos bombas tínhamos de ficar de baixo de terra, nuns pisos -0 que as casas têm. As escolas fechavam e não estudávamos. Só quando deixávamos de ouvir bombas podíamos sair”, explica o jovem sírio, Esmaeil Ajjan.
Esmaeil é um dos refugiados que Portugal acolheu em 2017, veio para Guimarães e desde então tem o acompanhamento do projeto municipal Guimarães Acolhe.
“A minha família ficou feliz por eu não ficar na Síria. Eles pensam muito em mim, preocupam-se, mas sabem que qualquer sítio é melhor do que a Síria. Aos 18 anos tem de se ir para militar e ninguém gosta disso, porque demora mais de cinco anos e muitos jovens fogem dessa situação. As famílias têm medo que os jovens fiquem na Síria”, revela.
Primeiro foi para a Turquia, onde tinha um tio. Acabou por ficar apenas dois meses. Sem documentos, sem trabalho e sem conseguir estudar, não se deu com aquele país e voltou a sujeitar-se ao pior. Em retrospetiva, aos 18 anos precisou de fugir das suas raízes, separou-se dos que mais ama, interrompeu os estudos, pagou 300 dólares a um “guia” que organiza grupos de quem pelo desespero está disposto a tudo; caminhou durante sete horas pela escuridão da noite, com mais medo de ser apanhado por polícias e ficar retido na Síria, do que das quatro horas de ondas e frio que seria obrigado a atravessar num barco de borracha, desde a Turquia até à Grécia. Pela liberdade e uma vida melhor aguenta-se qualquer coisa. “Esta viagem nunca na minha vida me vou esquecer, pessoas a cair do barco para as águas, muito complicado, um barco de borracha muito pequenino, com 40 pessoas, muita gente a chorar, muitas crianças, muito medo”.
Gelado, quando finalmente pisa o solo de Mitilene, Lesbos, na Grécia, Esmaeil encontra grupos de pessoas que acolhem os sobreviventes. “Tinha lá grupos de ajuda, como o Centro de Refugiados e Cruz Vermelha. Chegámos todos molhados, eles deram-nos roupa, enrolaram-nos com uns cobertores para ficarmos quentes, estávamos gelados da viagem, deram-nos comida, havia muita ajuda”. Fica no campo de refugiados da ilha durante quatro meses. “Lá também foi muito complicado. Tudo cheio de gente, muita gente diferente de vários países. Depois cheguei a uma tenda, com mais de 100 pessoas e uma cama com um metro para cada pessoa. Disseram-me que tinha de ficar ali por tempo indeterminado, até ter os meus documentos prontos para ir para a capital, Atenas. Meses de filas de 200 pessoas a esperar para comer e horas para conseguir tomar banho. E eu tinha de tomar banho, era muita gente junta e tinha medo de ficar doente”.
Só no momento em que se aloja em Atenas é que Esmaeil tem possibilidade de contactar a sua família. Por saber que estão bem e lhe querem bem, subtrai-se alguma da sua preocupação. “Lá não consegui trabalho, não tinha documentos, não consegui estudar, não consegui dormir, estava sempre a pensar na minha família. Depois pensava na minha vida, se ficar aqui o que faço? Também não posso sair da Grécia, estou preso”. Existia uma professora no campo que ajudava os migrantes a aprender inglês e grego. Esmaeil era assíduo nas aulas e ansiava absorver o máximo do que lhe era transmitido. “Estava com essa professora todos os dias para aprender as línguas. Se tinha tempo, não tinha mais que fazer, fazia isso”, lembra. Um dia, há uma luz. “A UNCHR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) perguntou-me se queria ir para Portugal ou se queria ficar lá na Grécia e eu disse “quero Portugal, não quero nem mais um dia aqui”.
Mas ficou. Esperou mais três meses. Chegou a Portugal a 20 de fevereiro de 2017. Foi-lhe dito que ainda teria de se deslocar até uma cidade chamada Guimarães. Esmaeil só queria um sítio onde ficar.
Guimarães foi o recomeçar. Assim que pisou solo vimaranense, quis logo aprender a língua portuguesa. Teve o apoio do Guimarães Acolhe que garantiu aulas na escola Francisco de Holanda e durante um ano e meio os essenciais, como casa, cabazes de alimentos e uma quantia de dinheiro semanal. “Ajudam muito e preocupam-se. Ligam sempre a ver se precisamos de alguma coisa. Pagaram renda, deram-me comida, ajudam no que for preciso. Três meses depois de cá estar arranjei trabalho”.
Cinco anos depois, Esmaeil, já com 24 anos, mora sozinho e está “bem melhor”. Sente que Guimarães é a sua casa e, por mais cidades que visite, não se imagina a viver em nenhuma outra. “Já fui a muitas cidades de Portugal, mas gosto mais de Guimarães. É mais calmo, muito limpa, muito simpática. Tenho amigos em Lisboa e no Porto e dizem para ir viver com eles, mas para mim é melhor aqui.”.
Entretanto, arranjou um outro trabalho, num supermercado, onde está há um ano e meio e sente um grande apoio por parte dos colegas que lhe vão descodificando alguns nomes de produtos. Apesar de agradecido pelo apoio, não esconde a ambição de um dia alcançar a sua profissão de sonho. “Eu quero fazer o curso de mecânica, mas para isso tenho de voltar a tirar o 9.º ano. Pelos vistos, o 9.º da Síria não tem equivalência aqui. É complicado, tenho de estudar tudo outra vez para fazer o curso. Estou a pensar no próximo ano fazer isso”.
Da Síria só sente falta da família, que não vê desde dezembro de 2015. Não acredita que tão cedo a conjetura do seu país melhore, então não pretende voltar. "A vida lá é muito complicada, tudo caro e há pouco trabalho. Agora tenho esperança no futuro. Sei que tenho de esperar para que algumas coisas se reponham, aos poucos. Já tenho mais ou menos tudo. Na minha vida só me falta a minha família”.