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Da “contenção” ao experimentalismo: foi o primeiro ato do Guimarães Jazz

Tiago Mendes Dias
Cultura \ terça-feira, novembro 16, 2021
© Direitos reservados
Envolta pela voz etérea de Inês Malheiro, a tempestade sonora da Porta-Jazz concluiu a primeira metade de um festival com jazz “pensado” ou instintivo, com grandes ou pequenas formações e jams.

Foi com um leve sopro a abanar a “cortina” de plástico que separava os intérpretes do público que encerrou a primeira metade do 30.º Guimarães Jazz; esse instante de acalmia contrariou 40 minutos de tumulto sonoro, onde segmentos mais familiares do jazz, à boleia do saxofone de Daniel Sousa ou do trompete de João Almeida, se fundiam com os experimentos eletrónicos e a voz de Inês Malheiro e a cenografia de Carolina Fangueiro; amarelada na maior parte do tempo, a luz entrava difusa pelos olhos dos cerca de 150 espetadores presentes na black box do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG). Os artistas viam-se desfocados por detrás do véu, como o jazz se ouvia nos detalhes daquele muro experimental.

“Quando vamos a um concerto de jazz, em que a técnica e o virtuosismo são partes muito importantes, há uma ligação muito forte à visão. Não se vai ouvir, mas também ver isso acontecer. Pensámos retirar isso ao público”, confessa Inês Malheiro ao Jornal de Guimarães.

Envolvida noutros projetos, como Fura Olhos, duo que se estreou ao vivo no Mucho Flow, há semana e meia, a artista foi a convidada para mais uma residência artística da Porta-Jazz, associação que colabora com o Guimarães Jazz há praticamente uma década. “Neste ano, convidaram-me e decidi convidar a minha amiga e colega Carolina Fangueiro para pensar “de que forma o espaço poderia afetar o som e de que forma o som poderia afetar o espaço”, explicou, a propósito do processo criativo.

Depois escolheu os músicos que “estivessem à vontade para improvisar num contexto mais livre”, sem “a estrutura tradicional do jazz”, nem as “definições” associadas a esse universo musical e aos próprios espetáculos ao vivo. “A cenografia servia para tirar o foco aos intérpretes. Em vez de vermos o piano, o contrabaixo e a bateria a tocarem, ouvimos uma massa de som. Às vezes, não sabíamos se os sons vinham do saxofone ou da guitarra”, descreveu.

Convencida de que as “coisas novas” só aparecem quando se questionam as “categorias”, Inês Malheiro mostra-se ainda grata à “equipa técnica do CIAJG” por tornar possível o concerto tal como fora idealizado. “Se não fosse a equipa técnica, seria muito complicado fazer isto”, reconhece.

 

 

“O festival quer ser eclético e variar o mais possível”

Entre quinta-feira e domingo, o Guimarães Jazz desenrolou-se a um “nível elevado”, com registos que se complementaram em “bons concertos”, resume o diretor artístico Ivo Martins. “Os concertos são diferentes. O festival quer ser eclético e variar o mais possível”, diz ao Jornal de Guimarães.

A “contenção” do The Vijay Iyer Trio marcou a abertura de mais uma edição, com um piano sempre “controlado e pensado”, apesar da “competência” de Vijay Iyer, de Linda May Han Oh e de Tyshawn Sorey. Esses movimentos refletidos deram, no segundo dia, lugar ao jazz “visceral e instintivo” do Miguel Zenón Quartet, com raízes no cancioneiro latino-americano, afirma Ivo Martins. “É uma música que apela mais à dança e ao lado físico. Há ali sempre um ritmo que nos atira para ritmos como o cha cha cha e o bolero”, frisa.

O programador descreve o concerto do europeu WHO Trio, no sábado à tarde, como “incrível”, pela forma como “desmontou a obra de Duke Ellington”, escrita sobretudo para orquestra, e do Chris Lightcap’s Superbigmouth, à noite, como a expressão de “dois saxofones formavam uma frente que parecia de vozes humanas, com as guitarras a servirem de base”.

Já a performance da Big Band da Escola Superior de Música e de Artes do Espetáculo (ESMAE), sob a direção de Ryan Cohan, no domingo à tarde, evidenciou algo que, há 30 anos, “seria impossível em Portugal”. “Uma das coisas mais importantes que o 25 de Abril permitiu foi esta abertura ao ensino, esta desmistificação da música, que antigamente era reduzida aos conservatórios de Lisboa e do Porto”, reitera. “A maior parte dos músicos aprendia em filarmónicas. Hoje veem-se jovens com formação superior, informadíssimos, que, em poucos anos, aprendem a tocar como adultos”.

Para o diretor artístico, o Guimarães Jazz é um bastião desse princípio de “igualdade”, por se dirigir a “todo o tipo de pessoas, todo o tipo de músicos, de qualquer idade, de qualquer tempo, de qualquer experiência”, sem se limitar aos “grandes nomes num grande auditório”. “Este festival tem uma parte formativa, convive com os jovens e trá-los para Guimarães. Esses jovens tocam nas jam sessions com os músicos mais velhos. Cruzam-se gerações. Alguns dos músicos do Grande Auditório vão às jam sessions e também tocam. Tudo isto é extremamente rico”, salienta.

 

“Uma das coisas mais importantes que o 25 de Abril permitiu foi esta abertura ao ensino, esta desmistificação da música, que antigamente era reduzida aos conservatórios de Lisboa e do Porto”, Ivo Martins, diretor artístico do Guimarães Jazz

 

De quinta a sábado, o quinteto de Ryan Cohan, com concerto marcado para dia 20, espalhou o perfume de Chicago pelas paredes graníticas e pelos tetos emadeirados do Convívio, associação ligada ao festival desde a sua criação, em 1992. O espaço foi-se enchendo aos poucos, com muitos sotaques estrangeiros a conviverem com o vimaranense. Ainda assim, a lotação esteve longe de igualar os picos de outros anos. Os jovens estavam lá, mas os aficionados de gerações mais velhas resguardam-se, devido à pandemia, nota Ivo Martins.

A gente ainda está com a pandemia, por incrível que possa parecer. Isso nota-se nas jam sessions do Convívio. Veem-se muitos jovens, mas não pessoas de outras idades. É natural, porque isto está longe de estar resolvido. É natural que as pessoas tenham cautela e se defendam”, admite.

Os timbres do saxofone e da bateria propagam-se entre as imagens da exposição “60/30”, ali expostas, com vultos como James Carter a tocar no meio do público. “Comecei a gostar de jazz por ouvir aqui as jams. O James Carter veio cá duas ou três vezes. Esta imagem é de há seis ou sete anos atrás”, aponta o presidente do Convívio.

Para Carlos Jordão, é impensável retratar a essência do Guimarães Jazz sem aquelas noites do Convívio, onde artistas reputados, alunos e público se congregam numa celebração coletiva.

“Os músicos estão muito mais à vontade e os próprios alunos, ou mesmo elementos do público que saibam tocar, são muitas vezes chamados. Nunca é negada a participação. Tocam os músicos, tocam os alunos da ESMAE. Há pessoas que têm curso de jazz e músicos que gostam e estão a ver. É muito mais intimista. É um dos pontos altos no festival”, assinala.

 

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