D. Teresa e o infante Afonso humanizados na Ataca, a abrir o 24 de Junho
Clareira próxima à fronteira entre Aldão e São Torcato, o Campo da Ataca é um dos espaços públicos de Guimarães onde a memória da Batalha de São Mamede perdura, graças às esculturas de Augusto Vasconcelos, inauguradas em 1996. A partir desta quinta-feira, contudo, a interpretação desse episódio decisivo para a fundação de Portugal tem uma nova camada: salta logo à vista, mal se chega ao local.
A entrada assume agora as cores e as formas de um homem e de uma mulher de costas voltadas a contemplarem o horizonte. No verso dessa estrutura, eles aparecem de frente, rosto determinado, equipados para a batalha: espelham a perspetiva de Ana Monteiro sobre D. Teresa e o seu filho D. Afonso Henriques, os líderes das forças em oposição.
“Quis incidir algum pensamento sobre a concretização da batalha, mas também sobre a humanidade destas duas figuras que estamos habituados a conhecer por fortes simbolismos. Eram uma mãe e um filho plenos de humanidade, movidos por ambições e paixões. Interessou-me ler muito sobre a história que contamos há 900 anos”, esclarece a artista.
A inauguração dessa obra em 360 graus, na qual a criadora quis “incidir uma luz mais honesta sobre a figura histórica de D. Teresa”, marcou o arranque das comemorações de mais um 24 de Junho, 894 anos depois do acontecimento que constitui motivo para a celebração.
Grata para com a ajuda dos vizinhos numa área com “poucos serviços ao redor”, Ana Monteiro deixou um especial agradecimento ao pai, pelos momentos de partilha que viveu num trabalho ironicamente centrado na desavença entre uma mãe e um filho. “Não deixa de ser curioso que tenha servido de palco para criar memórias tão ricas com este ser humano extraordinário que tenho privilégio de ter como pai. Se o mote da vida é o colecionismo de memórias, saio daqui infinitamente mais rica após o contacto com esta terra, com esta gente”, proferiu.
Ana Monteiro espera ainda que, “nos anos por vir”, o público possa completar o “circuito” que uma obra de arte sempre se propõe a ser. E a curadora Helena Mendes Pereira classificou-a como uma das melhores de todo o Amar o Minho, projeto artístico que envolve os 24 municípios das Comunidades Intermunicipais do Alto Minho, do Cávado e do Ave, com curadoria e comunicação da zet gallery, galeria de arte contemporânea sediada em Braga.
“É um trabalho fantástico que vai ficar bem neste portefólio de excelência que Guimarães tem. Ela merece estar em Guimarães. Finalmente estamos no Campo d’Ataca a fazer alguma coisa, com uma mulher. Muitos parabéns a Guimarães por ser um território em que os artistas trabalham em liberdade”, vincou a agente cultural, responsável por uma das áreas de programação da Capital Europeia da Cultura há 10 anos.
Convencida de que o Campo d’Ataca é um dos lugares “mais bonitos não só de Guimarães, mas eventualmente do Minho”, enquanto “espaço místico, de raiz, de fundação”, que deve ter “um dos céus estrelados mais bonitos do Minho em noites limpas”, Helena Mendes Pereira realçou que o projeto também dá visibilidade à criação feminina, ainda minoritária no espaço público.
“Tinha muita vontade de a trazer para o espaço público, como tenho muita vontade de trazer mulheres para o espaço público, altamente patriarcal. Há muito mais homens com obras em espaço público. Há muito mais arquitetos do que arquitetas. O espaço público precisa de feminino. Se há mais mulheres a saírem das universidades, elas precisam de visibilidade”, esclareceu.
Primeira-secretária da CIM do Ave, Marta Coutada lembrou que esta obra faz parte do Provere Minho Inovação, que arrancou em março, visando “promover e valorizar aglomerados populacionais de baixa densidade” com residências artísticas operadas segundo o mote “No Minho não há aldeia melhor do que a minha”.
Bragança quer mais arte urbana no território vimaranense
Se o vereador para a Cultura, Paulo Lopes Silva, enalteceu a “abordagem contemporânea” a um acontecimento que remete para “raiz e identidade”, já o presidente da Junta de Freguesia de São Torcato, Alberto Martins, lembrou que o Campo da Ataca é um lugar com “um significado muito grande para os torcatenses”. “Nós, torcatenses, revemo-nos muito no monumento, não pela parte material, mas pelo que representa para a sua história. Sempre que há uma requalificação deste espaço, é um momento enorme de satisfação”, disse.
Convencido de que São Torcato, com “as suas virtudes e os seus defeitos”, “reforça todos os dias a sua marca”, o autarca enalteceu “a dignidade” que Ana Monteiro conferiu àquele lugar “ao calor ou à chuva” no processo de criação e execução.
A interpretação ali espelhada da Batalha de São Mamede também mereceu elogios de Domingos Bragança, que afirma ter visto “pela primeira vez Afonso Henriques como jovem, e a sua mãe também”.
“Esta interpretação da Batalha de São Mamede suscita-nos grandes reflexões, grandes paixões e uma enorme responsabilidade. Com certeza, envolveu a tristeza de uma mãe e a tristeza de um filho”, disse o presidente da Câmara Municipal, antes de completar: “Apesar das costas voltadas, há a candura da imagem. A bondade desta imagem mostra-nos o quão difícil terá sido ir para o campo da batalha. Às vezes, só vemos o que é mais agressivo. Quem fez estes grandes acontecimentos sofreu e teve alegrias como nós temos”.
Para o autarca, é necessário densificar a interpretação artística da Batalha de São Mamede no Campo da Ataca, mas não só. Com a preparação dos 900 anos da batalha já em marcha, o responsável quer ter arte pública referente ao momento em vários pontos do território vimaranense, admitindo alguma escassez de arte pública em Guimarães.
Essa ambição coexiste com o desejo de ver o dia 24 de Junho consagrado como feriado nacional, novamente repetido nesta quinta-feira. “Este é o Dia Um de Portugal e não queremos ficar com ele só para nós. Este dia é dos portugueses e queremos partilhá-lo com todos”, defendeu.