
Cultura em Guimarães: “É vibrante na superfície e desnutrida no coração”
Já vendeu mais de um milhão de livros e continua a conquistar leitores. Para o vimaranense Pedro Chagas Freitas, 45 anos, as palavras não são um luxo literário, mas uma necessidade vital — um grito abafado pela forma. Entre rascunhos e silêncios, escreve para não explodir e para lembrar que há palavras que podem dar sentido aos dias.
Em entrevista exclusiva a O Conquistador, o autor fala do percurso literário, dos desafios pessoais, da relação ambígua com Guimarães, do estado da cultura vimaranense e do problema de saúde do filho, que o fez conhecer um mundo mais pequeno, mas mais nítido.
Considera-se um proscrito, um pária sentimental, e responde sem rodeios aos críticos: “A autoajuda, quando é autêntica, é a mais violenta das literaturas: põe-nos frente ao espelho. Quem detesta espelhos detesta quem os escreve”.
ENTREVISTA: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva
FOTOS: Gonçalo Delgado
Escreves como quem grita ou como quem sussurra? O teu estilo é uma catarse, um grito, ou uma escolha estética consciente?
Escrevo como quem grita por dentro. O sussurro é a forma; o grito é o conteúdo. A estética é um acidente da urgência. Não escolhi escrever assim: escolhi não morrer. Escrever é o que me impede de explodir. A catarse, se é que existe, é inacabada. Escrevo como quem cospe sangue. Nada do que escrevo é bonito no papel de rascunho, tudo vem sujo, tudo vem com dores. Até, sobretudo, as frases que parecem limpas.
Alguma vez tiveste medo de que a necessidade de ‘vender’ matasse a tua urgência de ‘dizer’? Como se sobrevive à indústria sem trair a voz interior?
Todos os dias. O mercado é um alçapão dourado. Mas eu não escrevo para o mercado; escrevo apesar dele. O que vendo não é o que me guia; é o que me permite continuar. Trair a voz interior é fácil; o difícil é suportá-la calada. Sobrevive-se traçando uma fronteira: há textos que alimento, há textos que me alimentam. Esses últimos guardo a sete chaves.
O que nunca conseguiste escrever… e porquê?
Nunca consegui escrever o instante em que percebi que o meu filho podia não sobreviver. A literatura tem limites; a dor não. Tentei várias vezes. Tudo soava falso, melodramático, menor. Há dores que não cabem em palavras. A frase mais verdadeira que escrevi sobre isso foi em branco.
A tua escrita é, por vezes, referida como de ‘autoajuda disfarçada’. Que preconceito está associado a essa referência?
O preconceito de quem acha que ajudar é menor. Como se só fosse literatura se for difícil de entender, se for estéril. A autoajuda, quando é autêntica, é a mais violenta das literaturas: põe-nos frente ao espelho. Quem detesta espelhos detesta quem os escreve.
Os teus primeiros livros foram quase “clandestinos” no circuito literário. Vacilaste nesses momentos? Puseste tudo em causa — a escrita, o caminho, o próprio valor ou confiavas em ti e no futuro?
Vacilei todos os dias. Havia silêncio à volta. Pior: havia escárnio. Mas o silêncio externo nunca foi tão forte como o barulho que tinha dentro. A escrita é um destino. Mesmo que ninguém leia. Mesmo que ninguém queira. Às vezes, escrever é tudo o que sobra.
O problema de saúde do teu filho, o Benjamim, mudou a tua forma de escrever ou a tua forma de estar no mundo?
Mudou tudo. Destruiu tudo. Depois reconstruiu. O mundo tornou-se mais pequeno e, ao mesmo tempo, mais nítido. O verbo deixou de ser um ornamento: passou a ser abrigo, grito, oração. Agora escrevo para salvar. Eu, ele, os que me leem. É tudo mais urgente. Mais humano.
Onde se encontra chão quando a realidade quase desaba?
No colo de quem ainda nos ouve sem nos interromper, no cheiro de quem ficou, na primeira gargalhada depois do medo. E, amiúde, numa palavra escrita no meio da noite. A realidade desaba, sim. Mas há palavras que não desabam. São chão de emergência.
Sentes-te parte de uma elite cultural ou de uma contra-cultura emocional?
Sou proscrito. Não me querem na elite porque não falo com mesóclises. Não me querem na contra-cultura porque vendo livros. Sou um pária sentimental. Talvez seja esse o meu lugar: não caber onde há etiquetas. A única bandeira que tenho é a do sentir.
Guimarães é Berço de Portugal e também o teu. Mas é mais berço, casa ou "má mãe e boa madrasta"?
É tudo isso. É o lugar onde cresci e onde morri um pouco. É uma mãe com a qual discutimos, mas voltamos sempre. É onde me parto e me componho. É a cidade que nunca me entendeu muito bem, mas onde, por dentro, continuo a escrever — pode ser que um dia me entenda. Ou não. Vou amá-la da mesma maneira.
Qual é o “estado da arte” da cultura em Guimarães?
É um teatro onde falta público e sobra programação. Uma feira cheia de artistas sem rua. É vibrante na superfície e desnutrida no coração. Tem talento, tem vozes. Mas ainda não sabe ouvir-se. O berço ainda não acordou completamente.
És uma pessoa de fé?
Sou uma pessoa de dúvida. Pode ser uma forma mais honesta de fé. Acredito num sentido que não sei dizer. Acredito no que não vejo. A fé, para mim, é o que nos faz continuar mesmo sem garantias. Eu continuo. Quero acreditar em qualquer coisa. Preciso de acreditar em qualquer coisa.
Existe alguma figura da Igreja Católica que mais te tenha marcado e tenha influenciado o teu quotidiano?
O Papa Francisco. Pela sua coragem serena. Pela forma como se aproximava dos mais pequenos, dos mais necessitados, sem precisar de pedestal. Marcou-me, nele, a ideia de que há bondade fora do ritual. Deus, se existir, prefere o gesto à liturgia.
5 respostas rápidas |
Francesinha ao almoço, poesia ao jantar.
Leio sempre vários ao mesmo tempo. Neste momento, O Inventário dos Sonhos, o último de crónicas do Lobo Antunes e o boletim clínico do meu filho.
“Man on the Moon”, dos REM.
O Fabuloso Destino de Amélie Poulin.
Sobreviver. Nos intervalos, ver o Benjamim a dormir. É quando o mundo faz sentido. |
[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de julho de 2025 do Jornal O Conquistador.]