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Coelima: a teia e a trama de uma referência social

Tiago Mendes Dias
Economia \ quinta-feira, maio 27, 2021
© Direitos reservados
Assombrada pela insolvência, a Coelima foi, no século XX, uma têxtil moderna e um espaço de relações sociais ao qual era “um orgulho” pertencer.

Numa qualquer manhã da década de 70, Abel Pereira saiu das Taipas a más horas e estava atrasado para o trabalho. Ainda por cima, a polícia mandou parar o carro em Silvares. “Pedi-lhes para ver se me despachavam, porque estava atrasado”, recorda. Os agentes quiseram então saber em que empresa trabalhava. A resposta: Coelima. “Quando lhes disse que trabalhava lá, deram-me logo o documento e segui”, conclui.

Essa Coelima tem o mesmo nome e está no mesmo local da que foi notícia em abril último, pelo pedido de insolvência apresentado em tribunal. É a mesma empresa e, simultaneamente, não é. A versão de hoje tem 250 trabalhadores e um volume de negócios aquém dos 20 milhões de euros, ocupando-se apenas de alguns processos produtivos têxteis. Em 1972, os trabalhadores eram quase dois mil para a produção diária de 23 toneladas de fio de algodão 135 mil metros quadrados de pano de lençol e 10 mil unidades confecionadas. As vendas, essas, disparavam, atingindo os 400 mil contos nominais (sem contar a inflação).

E aquele complexo industrial de Pevidém assumia a forma que hoje lhe conhecemos, dava conta o boletim mensal da empresa, editado ininterruptamente de 1964 a 1984: a estamparia era a novidade da empresa, a fiação tinha um novo espaço, bem como a tecelagem, que iria acolher os modernos teares Sulzer.

 

“Era um estatuto trabalhar na Coelima. Quem lá não trabalhava gostaria de lá trabalhar”, reitera Esser Jorge.

 

Mas aquelas linhas anunciavam também a conversão de um armazém num pavilhão gimnodesportivo; o equipamento viria robustecer ainda mais um universo com posto médico, cantina, cooperativa de consumo, orfeão e várias modalidades desportivas, com o ciclismo na dianteira do pelotão. Assim se via a dimensão da Família Coelima, termo recorrente de quem ali escrevia. “A certa altura, a Coelima era o organismo mais importante de Pevidém”, reitera Esser Jorge Silva, sociólogo que trabalhou para o grupo entre 1988 e 1995, mais propriamente na Ditel, a empresa responsável pelo mercado interno.

Pelo menos até 1991, ano em que o grupo têxtil da família Coelho Lima passa para a sociedade de capitais de risco Norpedip, esse “organismo” empenhou-se em criar uma “cultura própria”, na qual os operários eram mais do que “peças de uma engrenagem para se fazer dinheiro”, diz; os rostos e os nomes dos novos quadros apareciam nos boletins mensais, por exemplo. “Era um estatuto trabalhar na Coelima. Quem lá não trabalhava gostaria de lá estar”, reitera Esser Jorge.

 

 

“Convidaram-me para a comissão de trabalhadores”

Essa forma de estar está vinculada à figura de Albano Martins Coelho Lima, fundador da empresa em 1922 e administrador até à sua morte, a 25 de setembro de 1979, com 87 anos. “Criou uma cultura de quase associação entre o capital e o trabalho”, descreve o sociólogo.

O edifício que hoje alberga a farmácia Confiança foi a primeira casa da empresa, com um tear manual que custou 2.200 escudos à época, mas o impulso rumo a uma unidade têxtil vertical, com todos os processos, da fiação à confeção, deu-se em 1955, já na rua do Miral, com a colaboração dos filhos mais velhos. Adelino Coelho Lima, o mais jovem dos seis descendentes, foi também o último a ingressar na empresa. “Só comecei a trabalhar lá em 1960. A empresa já estava numa fase de crescimento”, recorda.

Adelino ajustou a sua formação em engenharia de eletrotecnia ao setor têxtil e dedicou-se à produção, acompanhando mais as evoluções das várias secções do que a área administrativo-financeira. Como o trabalho exigia proximidade com os operários, foi até convidado para integrar a primeira comissão de trabalhadores da empresa, formada antes do 25 de Abril. “É evidente que não podia ser”, lembra, aludindo à sua condição de administrador.

Esse foi um dos episódios que aparentemente testemunhava uma boa relação entre patronato e trabalhadores. Outro foi o Mercedes-Benz 220-SE que os trabalhadores ofereceram a Albano Coelho Lima, para assinalar o seu 73.º aniversário, a 29 de setembro de 1965. Grato pelo “esforço e dedicação” dos “bons amigos e estimados trabalhadores”, em palavras escritas no boletim de outubro, o líder da Coelima prometeu garantir “mais conforto, comodidade e bem-estar”, com a abertura da cantina e a dinamização do Centro Cultural e Recreativo Albano Coelho Lima, que viria depois a ser o Centro Cultural e Desportivo Coelima.

A empresa já tinha futebol no campeonato distrital da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), mas viria a competir no andebol, no basquetebol, no voleibol, na pesca e a anunciar o seu nome nas estradas portuguesas, graças a ciclistas como José Martins, Luís Teixeira ou Alexandre Ruas. Uma das pessoas que mais se envolveu nas atividades desportivas e sociais foi Maria Perpétua Campos.

Natural de Vendas Novas, no Alentejo, esteve em Setúbal e em Lisboa, antes de se mudar para Guimarães, quando o marido, engenheiro, ganhou o concurso para dirigir a Alfa, em Brito. Fluente em inglês e francês, entrou para a Coelima em 1968 para secretária da administração e fazia as visitas à fábrica, procurando saber junto dos trabalhadores o que “tinham de fazer num tear ou num contínuo” para explicar o processo. “Eles gostavam de participar. Estavam sempre a colaborar”, afirma. Havia até quem a tomasse por sócia da Coelima, por estar tão associada à imagem da empresa. “Começaram a puxar um bocadinho por mim. Mas não tinha nada”, ri-se.

Depois do pavilhão abrir, trabalhadores e familiares entravam à hora que quisessem para praticar desporto, dispondo de professores que se “ofereciam” para colaborar ou que a Coelima “comparticipava com muito pouco dinheiro”. Perpétua fala por experiência própria: jogou voleibol e badminton, até para preencher os fins de semana que dedicava ao CCD. Para ser mais fácil conjugar vida pessoal e profissional, arrastava marido e filhos. “Pu-los todos a fazer badminton e levava-os todos os fins de semana para o pavilhão. Sábado de manhã, toca a jogar. Domingo de manhã, toca a jogar. E eles adoravam”, recorda.

 

“Estive quase 20 anos inscrito, mas não ia ao centro de saúde. Tinha médico e dentista na Coelima. Havia tudo”, Abel Pereira, chefe de tecelagem

 

O desporto também contribuiu para uma maior liberdade social das operárias: para as mães, era “um bocado difícil” aceitar que as filhas usassem roupa mais curta para jogar voleibol, mas o seu esforço de as ir buscar a casa derrubou essa barreira. O problema tornou-se rapidamente o oposto: “havia quem quisesse entrar, mas já não era preciso mais ninguém na equipa”.

Para Maria Perpétua, esse trabalho só foi possível graças à liderança da empresa. “Se eu não tivesse o amém deles, não poderia levar essa vida. Como os Coelho Lima eram muito humildes e precisavam da minha ajuda, eu dava a minha ajuda. Fazia tudo o que podia por eles”, descreve, mencionando ainda as visitas que faziam a trabalhadores doentes, as festas de Natal com três a cinco mil crianças, as prendas que operários com “cinco, seis, sete filhos” levavam para casa.

Na tecelagem, secção para a qual entrou após breve passagem pela serralharia, Abel Pereira tinha de entrelaçar a teia (fios longitudinais) e a trama (fios transversais) para fabricar um tecido. Trabalhar ali era “um orgulho para quem o pronunciava”, recordando os cuidados de saúde de que dispunha. “Estive quase 20 anos inscrito, mas não ia ao centro de saúde. Tinha médico e dentista na Coelima. Havia tudo”, recorda.

Até 1991, os salários também eram “acima da média”, realça Esser Jorge Silva. E não só: o grupo chegou a proporcionar aos trabalhadores “ganhos superiores” às reivindicações laborais, pelo que a greve foi, ali, uma realidade desconhecida por “muitos anos”. A família Coelho Lima via a circunstância com “orgulho”, mas, por vezes, ficava constrangida nas reuniões das associações patronais. “Às vezes, ficavam um bocadinho mal na fotografia por pagarem salários superiores aos dos contratos coletivos de trabalho. Colocava-os numa posição um bocadinho ingrata perante as outras empresas”, descreve.

 

 

As rotações da expansão

Quando Maria Perpétua ingressou na Coelima, os trabalhadores eram cerca de mil, o que “já era uma loucura”. Mas o espanto foi maior quando viu a lista de espera. “Havia duas mil e tal pessoas para entrarem. As pessoas queriam todas ir para a Coelima, porque era uma marca”.

Era um tempo de expansão; os boletins anunciavam a entrada de 20 a 30 novos trabalhadores a cada mês. Esse número expandiu-se até a um “apogeu” com de 3470 ou 3480 pessoas, 42 toneladas de fio diárias e um volume de negócios anual de 22 milhões de contos (110 milhões de euros, sem contar com a inflação) no início da década de 80, precisa António Fernandes, quadro da empresa entre 1970 e 2007.

Os primeiros tempos ainda estão vivos na memória: havia trabalhadores das zonas de Pevidém, Ronfe, Brito, Ponte, Taipas, bem como da cidade, mas também de Joane, Fafe, Braga, Famalicão e até Póvoa de Varzim. Os autocarros sucediam-se às portas da empresa, mas havia também quem preferisse a bicicleta. No seu tempo, as deslocações a pé já não eram comuns, mas viu-se obrigado a fazê-lo uma vez, quando a neve bloqueou as estradas. “Não havia transportes públicos e fomos todos a pé, a partir da Pisca (Creixomil). Éramos uns 15 ou 20. Demorou 40 minutos”.

Era tempo de se modernizar os acabamentos e as tecelagens: os teares Saurer, capazes de 170 rotações por minuto, davam lugar aos Sulzer, que atingiam as 270 e requeriam menos trabalhadores. A aliança entre equipamento moderno e o desenvolvimento, com o centro de formação profissional e a contratação de engenheiros, tornou a Coelima no “balão de ensaio” para o tecido industrial vimaranense de então. Para Esser Jorge Silva, esse papel de incubadora é das “facetas menos exploradas” do grupo têxtil. “Com a Coelima, muitas pessoas perceberam que se poderiam transformar em empresários”, indica.

A expansão produtiva foi também a internacionalização da empresa: depois da exportação de fio, a Coelima avançou mais tarde para a exportação de “lençóis em branco” e teve, à época, participações em duas empresas estrangeiras: a Beldorn, em Manchester, na qual trabalhou com a família Ruia, indica Adelino Coelho Lima, e a Payer-Coelima, na Suíça, recorda Maria Perpétua Campos. Essas ligações também promoveram a Coelima; o rancho folclórico do CCD fez uma digressão pelo país alpino, por exemplo. Hoje, o grupo detém uma empresa no estrangeiro: a catalã Juan Dalmases, que produz os artigos da Nicoleta, marca com “muita cotação”, descreve António Fernandes.

 

 

“Trabalhar para a banca”

Os alicerces da expansão escondiam, porém, as fissuras que viriam a alastrar até à transformação de 1991. O “avultado investimento” nos teares Sulzer e na Fiação 2 para se automatizar trouxe “encargos” que iriam tornar-se insustentáveis mais tarde, recorda António Fernandes. À época do 25 de Abril, a fábrica crescia num país recém-democrático que começava a “acudir” às necessidades da população, criando “encargos” com financiamentos quer do Fundo Monetário Internacional, quer de outras instituições de crédito, acrescenta.

Essa política expansiva colocou a banca no caminho da gigante têxtil. “A banca entra de braços abertos, a oferecer dinheiro. E eles metiam dinheiro com muita facilidade na Coelima”, recorda Maria Perpétua. Como não queria “mexer com os pagamentos aos fornecedores e aos trabalhadores”, a família Coelho Lima aceitou.

Os empréstimos deram-se em francos suíços e esse foi o “grande problema”, considera Esser Jorge. Aquando do investimento, o valor dessa moeda era ainda “irrisório” face ao escudo português, mas o panorama mudou após 1974; a dívida portuguesa cresceu “exponencialmente”, levando à desvalorização da moeda portuguesa.

O impacto dos empréstimos bancários só se sentiu a partir de 1984, quando a empresa se viu com “uma dívida imensa”; os juros eram a causa e ultrapassavam os salários pagos a cerca de três mil trabalhadores. “Era trabalhar para a banca”, resume Adelino Coelho Lima. Olhando para trás, o engenheiro têxtil reconhece que a família cometeu um “erro estratégico” ao não parar os investimentos que fizera, mesmo com os “edifícios a meio do caminho” e as “máquinas encomendadas com pagamentos do primeiro sinal”.

Outro erro, diz o engenheiro têxtil, foi a diversificação do negócio: o investimento na agricultura, com a Agroparaíso, até “não correu mal”, mas a aposta na área informática, com a Sopsi, foi um “desastre total”, com “prejuízo larguíssimo”. Já a Friminho, precursora das empresas de ultracongelados em Gondar, foi oferecida a Alexandre Soares dos Santos. “Ele tinha os gelados Olá. Uma vez, chamei-o para que comprasse a Friminho. Ainda esteve tentado, mas estava no princípio e não tinha o estofo suficiente. Não quis”, afirma.

 

“O meu pai não assistiu à crise, felizmente”, Adelino Coelho Lima

 

A situação deteriora-se até 1991, quando a Coelima não consegue pagar salários apesar da “boa carteira de encomendas”, recorda António Fernandes, um dos elementos próximos da administração nesse período “difícil e duro”. A EDP, por exemplo, “encostou a Coelima à parede”, obrigando-a a um pagamento semanal de 10 a 12 mil contos, para não cortar a eletricidade.

Num tempo em que os mecanismos comunitários de apoio às empresas eram ainda incipientes, a Coelima mudou de mãos, deixando a alçada da família que a criara; os administradores passaram a ser Jorge Seabra, Gonçalves da Rocha e Pedro Begonha, do grupo Norpedip. A empresa desmantelou a fiação, foi reduzindo aos trabalhadores e voltou a mudar de administração em 2011, com a formação do grupo MoreTextile.

Adelino Coelho Lima manteve-se na empresa por mais três anos, como consultor da administração, e recorda que o futuro da Coelima poderia ter sido ainda pior, não tivesse sido a ação do então Governador Civil de Braga, Fernando Alberto Ribeiro da Silva. Depois, rumou à Lameirinho, firma dos primos, para trabalhar como engenheiro em “22 anos fantásticos”, em que foi “colega e não patrão”.

Mais predisposto a olhar para o presente e para o futuro, o último dos filhos de Albano Coelho Lima mostra-se pelo menos grato pelo facto de o pai não ter assistido à queda da empresa. O momento foi assinalado no boletim de outubro de 1979, com inúmeros textos de saudade e um poema de Maria Perpétua, “Homem! Tu foste grande de humildade!”, já partilhado por trabalhadores da empresa na rede social Facebook. À época, mandaram-se fazer cinco mil painéis com o texto, e um deles está na casa da autora. “Posso não ficar orgulhosa de mais nada, mas fico orgulhosa disso. Aquele homem merecia isso”.

 

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