Candoso S. Martinho queria mais leitura. Daí nasceu a feira do livro
Cidália Vaz agarra, firme, uma mão cheia de livros. Daqui a uma semana, reúnem-se àqueles que guarda na Suíça, onde vive há 17 anos. No exemplar à vista, sobressai o título Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, uma seleção de João Pedro Mésseder e de Isabel Ramalhete aconselhada para o 5.º ano de escolaridade; comprou-o na Feira do Livro de São Martinho de Candoso para o filho Lucas. O adolescente acompanha-a na passagem por Portugal, mas confessa não falar muito bem a língua de Camões.
“Ele nasceu lá. Perguntei-lhe se queria algum livro, mas ele disse que era difícil. Não sabe ler bem português. Está habituado ao alemão e ao inglês”, diz a vimaranense emigrada no cantão de Zurique. “Compro porque quero pôr a língua portuguesa dentro da minha casa. Tenho três filhos e quero incutir-lhes a leitura. (…) O dia a dia é em alemão, mas em casa vamos falando português. Mesmo a Suíça não quer que percamos a língua-mãe”, esclarece.
De volta por uma semana, Cidália pisou de novo a terra em que nasceu há 51 anos a tempo do fecho da primeira edição da feira, nesta sexta-feira. Em plena sede da Junta de Freguesia, viam-se dezenas de livros coloridos, de história e de estórias, pensados para as crianças, sobre a mesa central. Nas estantes laterais, polvilhadas por centenas de exemplares, encontrava-se quase toda a coleção de José Saramago, obras de Luís de Sttau Monteiro, de Sophia de Mello Breyner Andresen, de Teixeira de Pascoais ou do malogrado autor chileno Luís Sepúlveda.
Para lá do alcance da vista, há os volumes que a população comprou. E foram “várias dezenas”, esclarece a presidente da Junta de Freguesia de São Martinho de Candoso. “Abrimos isto à comunidade e foi fantástico. Vendemos dezenas de livros. Não sei se até mais do que uma centena. Não estava a contar com tantos”, resume Odete Lemos.
O projeto consumou-se a partir de um outro que vigora desde 2016, o Candoso Ativo. A psicóloga Carina Loureiro coordena o grupo de “estímulo cognitivo”, para cidadãos a partir dos 55 anos, e “queria implementar uma nova prática de leitura”, prossegue a autarca. Como “não ia conseguir organizar a feira sozinha”, a junta associou-se para um evento de seis dias, que mereceu a colaboração da Porto Editora.
“Falámos com a Porto Editora. Forneceu-nos estes livros todos – alguns exemplares de cada. Temos livros infantis, de história, de todos os tipos, para todos os gostos. Não criámos uma feira do livro apenas para os idosos que frequentam o Candoso Ativo”, descreve a autarca daquele território com 1.234 habitantes, segundo o Censos 2021.
Algumas crianças, por exemplo, fizeram “listas com os nomes dos livros” que queriam. “Mostravam-nas aos pais para virem cá comprar”, conta. O encontro entre crianças e mais velhos foi, aliás, um dos propósitos da feira do livro; para o conseguir, os utentes do Candoso Ativo ensaiaram uma peça de teatro em fantoches “a partir de textos dos livros” ali expostos para a mostrarem às turmas da EB1. “Houve interação. Os meninos saíram da escola e os mais velhos prepararam-se para uma atividade diferente”, realça.
Como só tem de pagar à Porto Editora aqueles livros que vende a Junta prevê um “lucro mínimo” a reverter para “iniciativas sociais”, já que recusou inflacionar o preçário antes estabelecido. “Achámos muito importante não aumentar o preço, se queremos estimular à leitura”, justifica.
“Há 40 anos era impensável haver uma feira do livro em São Martinho”
A sessão de encerramento coube a um autor da terra, que já escreveu sobre a terra, em O Trémulo da Carriça (2015), o primeiro dos seis livros que já publicou. Médico urologista de profissão, Carlos Salgado Guimarães classificou de “louvável” uma iniciativa “impensável” na São Martinho de Candoso do frio na escola e dos teares de pau em que cresceu, há 40 ou 50 anos.
“Nessa altura, a única coisa que se lia em São Martinho de Candoso era o jornal em dois ou três sítios. O meu tio Joaquim comprava o Comércio do Porto”, descreve ao Jornal de Guimarães. “Depois, havia uns livrinhos de cowboys e de banda desenhada. E havia os livros de escola. Não havia rigorosamente mais nada. Zero”.
Num momento presenteado por duas dezenas de pessoas, o autor falou de como o livro tem, para já triunfado, sobre alternativas digitais como o e-book, sobre o “inimigo telemóvel”, qual “pacemaker externo” do qual sentimos “não poder abdicar” e do porquê de alguns livros serem considerados “caros”, explicando um pouco o circuito comercial.
Acerca das suas obras, explicou que a mais recente, Olhar o mundo à nossa volta (2021) tem duas partes: a primeira explora o sentido de algumas das citações mais conhecidas e a segunda o quotidiano pandémico. Quanto ao próximo livro, confirmou já estar escrito, restando saber se vai ser publicado no final deste ano ou no início do próximo. “Passa-se no século XIX no local é a cidade e os montes que se quiserem imaginar no Douro ou nas Beiras. É sobre uma época negra da nossa história, que tem a ver com o abandono infantil”, antecipa.
Cidália Vaz é uma das pessoas que ficou para assistir. Quando desvenda as restantes obras que leva, o nome Carlos Salgado Guimarães inscreve-se em todas elas. “Já tinha lido este, O Trémulo da Carriça. Nada melhor do que levar os livros do escritor da terra”, finaliza, na antecâmara de uma semana onde espera mostrar Guimarães ao filho, para depois voltar à rotina da emigração.