Bolo de carne e sardinhas, a iguaria do povo que tem escapado aos registos
“Cuidado aí atrás com a pá, vou meter o bolo ao forno”. Esta frase é muitas vezes usada em cozinhas do concelho, nos tascos mais recônditos. Faz parte do ritual de colocar o bolo de carne ou o bolo de sardinhas no forno, entre as labaredas, com as grandes pás de madeira. O processo é conhecido da maioria, quase sempre num cenário de ruralidade, ou então numa aproximação à tradição com fornos a lenha o mais parecidos possível com os de outrora.
O bolo de carne, ou de toucinho – como também lhe chamam –, e o bolo de sardinhas estão há muito na ementa vimaranense e na ementa minhota em geral. Desde quando? Não se sabe. Em que circunstâncias? Também não se sabe. É certo que há forte tradição deste petisco em Guimarães, muitas vezes associado à mesa do lavrador. Praticamente em todas as freguesias há um local ou outro onde, em dias específicos, as chamas emanam do forno e consomem a massa que se transforma numa iguaria.
Não se pode, portanto, dizer que seja algo proveniente deste território, porque na realidade os bolos de carne e de sardinhas têm escapado ao crivo dos registos e da documentação. Através das gerações, o o importante tem sido conhecer o paladar, a textura e o aconchego do processo de confeção, sem as preocupações de documentar a sua essência. Pelo menos tem sido assim até agora, mesmo que, numa crónica publicada em 1855, Camilo Castelo Branco faça referência a um bolo do forno com sardinhas. “Conheço um no Minho que trouxe para aqui um bolo do forno com sardinhas que fez de presente à patroa da hospedaria”, pode ler-se no segundo volume dos Dispersos de Camilo, uma obra publicada em 1925.
O Jornal de Guimarães foi ao Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, mas a busca revelou-se infrutífera. Numa rápida pesquisa não há qualquer registo dos bolos de carne e de sardinhas. O historiador António Amaro das Neves desconhece, também, qualquer escrito que ajude a perceber a origem destes petiscos. “Nunca vi nada escrito sobre o bolo; é um mistério”, refere o historiador. “A aparecer em livros, textos ou documentos, nunca me passou pela frente e dificilmente não me passaria se houvesse alguma coisa”, sustenta, atirando que esta será uma tradição relativamente recente.
Não se conhecendo a origem, a realidade é que a sua confeção proliferou. Há uma receita mais ou menos reconhecida, à base de três farinhas: centeio, milho e trigo. O resto depende do tato de cada um.
“O segredo está no amassar: é preciso saber, ter tato, perceber pelo amassar quando está no ponto” Constantino Lameiras, Cantinho do Fadista
Mesmo sem história documentada para a posteridade, é certo que o bolo de carne e de sardinhas se trata de um legado. “Já nasci com isto. Tive uma padaria muitos anos na Cruz de Pedra, que já era do meu pai. E sempre cozemos a massa e o pão”, conta-nos Constantino Lameiras. Já o apresentamos. Das suas palavras, comuns a outras que ouvimos, outro ponto assente: o bolo de carne e sardinhas está diretamente relacionado com a cozedura do pão. “Seria feito quando se ia cozer a broa, com os restos da massa”, sugere Amaro das Neves. Voltando ao legado, é seguro dizer-se que quem faz bolo tem essa tradição familiar, como que uma herança a preservar.
Constantino Lameiras é o homem do bolo no Cantinho do Fadista, restaurante que tem a porta aberta na rua D. João I, junto ao coração da cidade. É sogro do proprietário; quando o genro “abriu esta casa”, o senhor Constantino estava por dentro da “orgânica de fazer o bolo” e assumiu as rédeas do pequeno forno nas traseiras. “O segredo disto é o amassar”, deixa escapar com um sorriso. “Isto não é complicado, mas também não é fácil”, alerta: “Não quer dizer que o nosso seja melhor, ou pior, mas é preciso saber, ter tato, perceber pelo amassar quando está no ponto”. Entra à conversa Filipe Fernandes, o proprietário, para dizer que quando o sogro esteve de férias tentou assumir o posto junto da masseira, mas sem sucesso.
Não consegui”, assume. O sogro solta com um ar de experiência que “quem faz isto são os velhotes”. Filipe Fernandes confirma também que quem mais procura “são os mais antigos”. Mas acrescenta: “Os mais novos começam a procurar cada vez mais”. Porquê? “Porque é bom”, sai a réplica instantaneamente, de novo ouvida nas várias latitudes do concelho percorridas pelo Jornal de Guimarães.
O Cantinho do Fadista foge um pouco ao padrão habitual dos locais que normalmente têm na ementa este petisco. Num conceito de tapas, o bolo é servido às quartas, sextas e sábados. “Usamos muito um rodízio de tapas regionais portuguesas, essencialmente desta zona, e queremos ter coisas o mais tradicional possível. Mais tradicional do que bolo com toucinho penso que não há; é obrigatório dentro deste conceito”, explica Filipe Fernandes.
Para que o bolo entre, então, no rodízio das tapas seguem a “receita tradicional” e o método “à antiga”. “Usamos carne de porco caseira, vamos buscar a uma casa que mata. Carne da parte da caluga” dá conta o proprietário. A parte seguinte já entra no raio de ação de Constantino Lameiras: “O forno tem de estar mais ou menos a 180 graus, demora cerca de uma hora, o bolo só pode ir para o forno quando o lastro ficar branco; depois é entre dois a três minutos. Tem de se conhecer o ponto”, explica o antigo padeiro, hoje com 76 anos.
Da Rampinha, em São Torcato, já saíram bolos para França
Com menos um ano de idade – 75, portanto – Glorinha ‘da Rampinha’ mete as mãos na massa, em São Torcato. Literalmente. “As costas já nem se queixam, estão habituadas”, conta Glória Fernandes. “O que vale é que é só às quartas e sábados” desabafa com um ar irónico de quem se queixa, mas, lá no fundo, até gosta do que está a fazer. Tal como Constantino, tem para si que o segredo é mesmo o amassar. “O amassar é que dá o paladar”, aponta.
Cumpre o ritual nestes dois dias da semana a escassos metros da Basílica de São Torcato, no restaurante Rampinha. O forno é o filho que o liga, António Fernandes, mais ou menos pela hora em que a mãe começa a amassar. “Aprendi com a minha mãe. Ou melhor, aprendi sozinha a ver a minha mãe, que ela dizia-nos para não estorvar. Mandava-nos ir buscar a farinha”, conta. É a única de sete irmãs que segue o legado, mas já deixa seguidores. O filho e um neto já sabem as manhas e os truques.
O Restaurante Rampinha tem as portas abertas desde 1968 e é há mais de três décadas uma casa em que se serve bolo. “Tem muita procura” e “os mais novos procuram cada vez mais”, acrescenta à conversa António Fernandes. “Mas se fizéssemos ao domingo também aparecia aí povo para comer”, intromete-se Glorinha da Rampinha.
Explicando que o bolo de carne e sardinhas não é algo que dê propriamente muito dinheiro – “é preciso trabalhar muito e vender muitos bolos para que seja rentável” –, António Fernandes contabiliza quase duas centenas de bolos vendidos num bom sábado. Recebe no seu estabelecimento “muita malta de fora”, como de Vila das Aves ou de Matosinhos. O motivo para a procura? “Porque é bom”, assume, com sorrisos. Já não é uma frase nova, mas continua a ser repetida. De uma forma mais complexa explica o seu ponto de vista: “Estamos a falar de uma coisa barata. Se não se beber um vinho caro faz-se uma refeição que não é cara e deixa satisfeito, porque a massa de milho enche. Com um caldo verde compõe e com meia dúzia de tostões faz-se uma refeição que aconchega”.
Tentamos pedir o segredo. Entre sorrisos, soltam que a receita é simples, mas daí a que se consiga acertar no processo vai uma grande distância. “É como antigamente”, diz Glória. “Deixamos um pouco da massa de uma vez para a outra – massa mãe – e depois leva água, sal e as três farinhas. No amassar é que está o paladar”, reforça, sendo complementada pelo filho, que diz que a intenção passa por seguir a tradição, mesmo que dê mais trabalho amassando à mão.
Quando o Jornal de Guimarães passou pelo Cantinho do Fadista foi-nos dito que “os emigrantes são um grande consumidor”. As ligações afetivas vêm ao de cima com esta iguaria que só encontram cá. Glorinha confirma: os emigrantes “perdem-se com isto”. Enquanto respira ofegante ao amassar mais uma dose, levanta-se e conta: “Já cheguei a mandar bolo daqui para a França; fiz como é costume, deixei arrefecer e embrulhei para o levarem. Depois, lá aqueceram no micro-ondas. Não é a mesma coisa, claro, mas dá para eles matarem um pouco as saudades”, pontua.
“Se não se beber um vinho caro faz-se uma refeição barata e que e deixa satisfeito, porque a massa de milho enche. Com um caldo verde compõe e com meio dúzia de tostões faz-se uma refeição que aconchega”. António Fernandes, restaurante Rampinha
Não saímos de São Torcato sem questionar como se deve acompanhar o bolo. “Um vinho tinto”, esclarece. O filho remata dizendo que “só não pode ser água”, porque “fermenta”. Não muito longe, a oito quilómetros, em Prazins Santa Eufémia, na À Nossa Maneira – Tasca, a principal companhia do bolo é o vinho espadal. “A casa já tem fama do seu espadal, por isso é o que mais se vende. Mas com bolo também vai bem branco ou tinto”, sugere Miguel Lima, atual proprietário do negócio de família, a segunda melhor tasca do mundo. Porquê a segunda? Perguntamos. “Qualquer uma é a primeira; qualquer um tem o melhor bacalhau ou melhor vinho. Por isso, deixamos o primeiro para os outros todos e ficamos em segundo”, explica com risos.
A funcionar desde 1994, a tasca À Nossa Maneira é gerida desde 2008 por Miguel Lima. Recebe uma encomenda por telefone enquanto fala connosco, por volta das 17h00 de uma quinta-feira. Dois bolos com carne e mais dois simples com 18 sardinhas, aponta. Vai contando a história enquanto o senhor Joaquim tem mão no forno. Um forno giratório que leva até 12 bolos em simultâneo. Confirma que, de facto, para os emigrantes, os bolos de carne e sardinhas são um petisco que, através do paladar, aconchega a alma e aproxima distâncias. “O mês de agosto e os 15 dias das festas do Natal, em que os emigrantes estão cá, são os mais fortes, quando sai mais”, dá conta.
Apesar de a sua mão há muitos anos fazer bolo em casa, a realidade é que se trata de uma realidade recente no seu estabelecimento. Começou em 2020, vendo o bolo como uma hipótese de escapatória para a pandemia. “Aproveitei para servir em take away quando estava tudo fechado, para servir as pessoas. As pessoas aderiram e continua a funcionas às quintas-feiras e sábados”. O retrato é o mesmo dos outros locais. Aprendeu a receita com a mãe, foi ouvindo as dicas e aperfeiçoando. “Sou eu que amasso. Fui vendo como a massa fica e aprendendo. Aqui a massa é toda medida. Não é a olho, tenho a minha percentagem e cada farinha e peso sempre para que possa ser sempre igual”, diz.
As comparações são quase que inevitáveis com a pizza. O bolo de carne e sardinhas é “a pizza portuguesa”, várias vezes disseram na nossa cruzada. Também os novos tempos fizeram que a realidade se adaptasse; hoje faz-se praticamente em todo o lado bolo misto, com queijo e fiambre, ou queijo, por vezes ketchup para complementar. “Vem cá um casal com um ou dois e filhos e, no mínimo, sai um bolo misto para a canalha”. É uma forma de manter o vínculo transgeracional, segundo Miguel Lima. “Gente de todas as idades procura o bolo. Sinto que é uma coisa que segue porque os mais velhos procuravam. Muita gente diz que gosta, e procura, porque a mãe ou a avó faziam, porque um vizinho fazia. Habituamo-nos a isso”, refere.
“Fim do mundo” no Túnica, em Moreira, quando à terça é feriado
Terminamos o périplo em Moreira de Cónegos, perto do apeadeiro da Cuca. A casa centenária onde o Túnica está instalado há mais de 35 anos esconde, à partida, a chama do interior. O salão de cima funciona como restaurante, o piso de baixo funciona como tasca para o bolo. “É o fim do mundo aqui quando é feriado à terça e há uma ponte”, diz-nos Domingos Moreira sem parar de virar bolos no forno e de tirar novos pedidos. Há três décadas e meia que trata de amassar os bolos que saem para a mesa, e para a fila que se vai formando junto à pequena sala em que três pessoas tentam dar vazão aos pedidos. Domingos complementa que “nem há noção do pessoal que por aqui passa em agosto”.
Gaba-se do seu recorde de bolos. Perdeu-lhe a conta, mas, diz, pelo número de sardinhas, dá para ter uma ideia. “Em seis horas, das quatro da tarde às 10 da noite, fritámos 12 mil sardinhas; pode apontar aí que não é treta”, sublinha o homem de 59 anos. E nos “bons dias” amassa, à vontade, 100 quilos de farinha. “É ou não é bonito o meu bolo?”, questiona entre a azáfama do serviço e o pedi.
O seu bolo, é “um dos baluartes” da vila, atesta o presidente da Junta de Freguesia de Moreira de Cónegos, António Brás Mendes Pereira, indicando que o estabelecimento funciona naquela que foi a casa do primeiro dos três comendadores da terra: João Pereira Magalhães. “Tem bolo, famoso nesta zona, às segundas-feiras e aos sábados. Já havia muito quem fizesse ao sábado e à segunda não havia nada, por isso decidimos apostar na segunda”, retrata Domingos. E pegou. “A abundância era tanta que há 10 anos tivemos de começar a fazer também ao sábado. Já nem sei quando será mais forte, se o sábado se a segunda-feira”, desabafa.
Reconhece que “toda a gente” come, deixando de ser uma coisa só para os mais velhos. Mas, ao seu estilo brincalhão, não deixa de dizer também que “os mais novos não querem o gordo da carne”. Pretende, “enquanto puder”, continuar junto ao forno, até porque este é o seu “ganha-pão”. A tradição, essa, poderá estar comprometida. “Não sei se isto se vai manter por muitos mais anos, sinceramente”, lamenta. A filha e uma sobrinha já têm o segredo do lado delas, já sabem fazer o bolo, mas ainda assim permanece inquieto. “Não estou a ver ninguém na família Túnica para continuar”, remata.