António Salgado Almeida: um “saltimbanco” na mais pequena ilha dos Açores
Desde que chegou ao Corvo, “um calhauzinho no meio do mar, com as Flores ao largo”, António Salgado Almeida sente-se “limitado” de movimentos. Mas quando estava em São Jorge, ilha do Grupo Central do arquipélago dos Açores, não havia mês em que não viajasse para Guimarães. O pavor de voar deu lugar a um hábito como qualquer outro. “Passado um ano e pouco, já era passageiro gold da SATA”, ri-se. “Tinha de tomar dois Xanax para andar de avião. Mas agora não. São tantas horas de voo que a gente acaba por se habituar”.
Este itinerário é só uma amostra de 62 anos de movimento perpétuo entre o território que lhe foi berço e um qualquer outro lugar do mundo. “Quase que me defino como um saltimbanco, como alguém que não para em lado nenhum”, sentencia.
Na adolescência, por exemplo, deixou São Martinho de Candoso para estudar nos seminários dos missionários combonianos, ora em Famalicão, ora na Maia. Mais tarde, quando chegou a hora de se aventurar pela medicina, rumou à União Soviética. Ficaria em Moscovo entre 1976 e 1986, mas não havia ano em que não voltasse a casa. “Fazia uma viagem, que saía de comboio de Moscovo para Paris: 44 horas”, recorda. “Depois, apanhava o comboio ou um autocarro de Paris para Guimarães; quem diz Guimarães, diz Porto ou Vigo. Era assim que se fazia naquele tempo”.
“Tenho duas enfermeiras a trabalhar comigo, mas sou o único médico. Sou eu e o mar à volta. Tenho de tomar decisões sozinho, porque não tenho colegas com quem conversar ou trocar opinião”, António Salgado Almeida
A ligação à terra natal é assim razão essencial para uma vida em permanente fluxo; e o ofício também o é. Foi o trabalho que, no ano passado, levou Salgado Almeida àquela ilha com 6,5 quilómetros de comprimento e quatro de largura, a mais pequena dos Açores. Naquela terra ocupada em boa parte pelo Caldeirão, o seu elemento paisagístico mais conhecido, é cirurgião, ortopedista, dermatologista, ginecologista, obstetra e pediatra. Opera a máquina de raios X e os equipamentos de análises. Assume as posições de delegado de saúde e de diretor da unidade de saúde da Ilha do Corvo. É médico. O único ao dispor das 380 pessoas ali vivem.
“Tenho duas enfermeiras a trabalhar comigo, mas sou o único médico. Sou eu e o mar à volta. Tenho de tomar decisões sozinho, porque não tenho colegas com quem conversar ou trocar opinião”, explica. E na única ilha açoriana sem internamento na unidade de saúde, essas decisões são muitas vezes “difíceis”, admite.
Em casos “mais graves” – já lidou com um “traumatismo craniano com perca de conhecimento” e com uma “fratura dupla da mandíbula” a jogar futebol -, chama o helicóptero para transferir o doente para um dos três hospitais da região autónoma: Ponta Delgada, Angra do Heroísmo ou Horta, o mais próximo. Mas a transferência está sempre rodeada de “constrangimentos”, face ao custo de quatro a cinco mil euros. “A vida não tem custo e, se tiver de ser, faz-se a transferência, mas não posso enviar um doente sem mais nem menos”, esclarece.
Ao fim de 37 anos de experiência, Salgado Almeida crê que o mais difícil na medicina não é a “complexidade” associada ao rol de especialidades, mas a circunstância de um profissional “desamparado”, sem ter a “quem pedir ajuda”. “Se nesta altura regressasse ao Continente, exercia a medicina com uma perna às costas, com todos os meios, apoios e facilidades que a gente tem”, reitera.
Mas esse isolamento é também “interessante” e “desafiante”, conferindo ao seu trabalho uma riqueza que não tinha em Portugal Continental. “Depois de seis anos de Açores, sinto-me muito mais médico”, confessa. “Somos, de facto, médicos de família destas pessoas. Ou confiam em mim ou não têm mais ninguém em quem confiar”.
Um médico de todos
Por muitos desafios que os Açores encerrem, a medicina no Continente tinha as suas vicissitudes; foi precisamente o crescente “cansaço” com o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde que o levou até São Jorge em 2015. Vinculado até à data ao Agrupamento de Centros de Saúde Gerês/Cabreira, Salgado Almeida ficou desagradado com o encerramento do serviço de urgência em Vieira do Minho e em Terras de Bouro, concelhos que servia. “Por qualquer pequeno acidente ou situação de doença, as pessoas tinham de fazer 50 quilómetros para irem a Braga ou à Misericórdia de Vila Verde”, recorda.
Limitado a consultas, o médico diz ainda ter ficado com “uma capacidade de trabalho reduzida” para um volume de utentes que chegou aos três mil. Cada vez “mais farto daquilo”, acedeu ao convite de “uns amigos” para rumar aos Açores, algo que conseguiu por concurso público.
Para trás, ficaram 29 anos de carreira, divididos entre o ACES Gerês/Cabreira e Guimarães. No concelho de origem, fez o internato geral no hospital, em 1986, o internato complementar no então Centro de Saúde de Caldas das Taipas e trabalhou no então Centro de Saúde da Amorosa, antes de se mudar para a unidade de Vieira do Minho nos anos 90. Foi um rosto da medicina desportiva, trabalhando no Vitória com Novais de Carvalho, o atual diretor executivo do ACES Alto Ave, e em vários outros emblemas, com destaque para o Vizela e para o Pevidém.
Esse contacto com o desporto levou-o à única proposta bem sucedida enquanto vereador da Câmara Municipal de Guimarães pela CDU entre 2001 e 2007 e entre 2009 e 2013: a criação do Centro Médico de Apoio ao Desporto de Guimarães, sediado na Pista Gémeos Castro. Pelo meio, fez esse trabalho junto dos clubes em “regime de voluntariado”; para Salgado Almeida, a sua profissão nunca foi “um toma lá, dá cá”, à semelhança da venda de um qualquer serviço. Essa é uma convicção antiga, que considera ter sido fortalecida enquanto permaneceu na União Soviética. “Aprendi a comportar-me segundo o espírito de que um doutor e um mineiro valem o mesmo”, reitera.
“Querer andar e não ter espaço”
Se o espírito com que hoje exerce medicina é o mesmo de sempre, o contexto difere; a começar pela paisagem. “Os Açores têm desde logo uma oferta de natureza e de mar única. A gente apanha uma overdose de verde, de natureza e de mar. Um mar fantástico, de água quente no verão, transparente”, descreve.
Salgado Almeida admite, porém, ser preciso “formatar a cabeça” para viver numa ilha com 53 quilómetros de comprimento e oito de largura – São Jorge – ou num território ainda mais exíguo – o Corvo. “Como continental, é difícil escapar à sensação de se querer andar um bocado e não ter espaço”.
Ao fim de seis anos, não tem dúvidas em eleger a ilha de São Jorge como a “mais interessante” das nove dos Açores. Escolhe-a por ser “lindíssima”, com a cordilheira montanhosa que se abate sobre a costa e as fajãs – formações geológicas de origem vulcânica -, mas também pelas “atividades culturais e recreativas”, influenciadas pela animação da vizinha Terceira. “Há as festas do Espírito Santo, as marchas, os bailinhos de Carnaval”, descreve. “Se queremos sossego, temos onde estar. Se queremos algum entretenimento, temos onde ir”.
Também vê diferenças entre as pessoas do Norte de Portugal e as que contactou nos Açores, por muito que considere o ser humano “igual em todo o lado”. “Na nossa região e em Guimarães, as pessoas são mais extrovertidas, menos desconfiadas e até diria mais generosas do que as pessoas das ilhas”, descreve. Para o médico, a maior dificuldade das pessoas dos Açores em “integrarem alguém” deriva da “própria vida” a que se habituaram.
Por outro lado, encontra um orgulho bem maior em ser-se português do que no Continente, tendo dado o exemplo do Portugal 2-2 França da última quarta-feira. “O bar dos Bombeiros do Corvo estava cheio de bandeiras nacionais. Esta gente sente muito mais da bandeira do que os continentais. Vem da necessidade de se sentir mais perto do país”, retrata. Aquela ilha é ainda um dos territórios mais seguros de Portugal: toda a gente está vacinada contra a covid-19 e anda na rua sem máscara.
Uma reforma em triângulo
Na Rússia ou nos Açores, a ligação de Salgado Almeida a Guimarães foi “sempre plena”. Na ilha onde se encontra, fala recorrentemente da terra natal. Quando estava em São Jorge, promoveu um intercâmbio cultural: o Orfeão Coelima atuou naquela ilha e um coro açoriano deslocou-se a Pevidém. Só não foi ainda mais longe nesse esforço, porque “os anos passam e a gente cansa”, diz.
Aos 62 anos, espera reformar-se daqui a quatro anos. E o regresso a Guimarães é imperativo. Ao longe, sente falta do “roteiro gastronómico” que o faz ganhar cinco quilos de cada vez que se desloca ao Continente, do centro histórico e do “espírito aberto e alegre dos vimaranenses”, mesmo na “adversidade”.
Embora sem a mesma urgência do passado, sente falta do Vitória, clube do qual se fez sócio em 1968 ou em 1969, quando os protagonistas ainda se equipavam na Amorosa e desciam para o então Estádio Municipal. “Gosto muito de ver o Vitória e ver se está bem, mas já passo bem sem ir a um jogo de futebol. Antigamente, tinha de ir a todos”, refere o antigo vice-presidente do clube, durante o período de Vítor Magalhães, entre 2004 e 2007.
Mas essa reforma não será estática; se tiver saúde, vai vivê-la em trânsito, como sempre fez. Salgado Almeida já tem a solução para quando se “fartar” do Continente: Aeroporto Francisco Sá Carneiro, para voar até São Jorge, onde tem uma “casinha fantástica”.
Mas o projeto fica inacabado sem “um saltinho a Moscovo” pelo menos uma vez por ano; Guimarães é a sua casa, mas Moscovo é a cidade onde viveu entre os 18 e os 28 anos, tendo lá conhecido a esposa. Juntos, criaram uma família com dois filhos. “Eles são metade portugueses e metade russos. A minha esposa é russa. Há essa ligação afetiva forte”, confessa. “E é uma cultura diferente, que não deixa de complementar alguma coisa de nós próprios”.