A tradição resiste: o Cantar dos Reis ainda sai à rua e entra pelas casas
Na paróquia de São Dâmaso, entre o Castelo e a Cruz d’Argola, os cantares de Reis percorrem as ruas e despertam as casas há pelo menos tanto tempo quanto os escuteiros. Há tanto tempo quanto Bento Pimenta. “Cantamos os Reis há 55 anos, ininterruptamente. Até na pandemia cantamos os Reis. Fomos para a igreja e transmitimo-los pelo Facebook”, confessa o dirigente do Agrupamento 331 do Corpo Nacional de Escutas (CNE), fundado em 1969.
Aos 71 anos, esmiúça com precisão as rotinas que se alteraram com o passar das décadas; um ritual que ganhava vida de segunda a sábado, entre 01 e 20 de janeiro – o dia de São Sebastião – cumpre-se agora à sexta-feira e ao sábado, com acordeão, tambor, ferrinhos, reco-reco, viola, saxofone e 30 a 40 vozes, infantis e adultas, do CNE ou da Fraternidade Nun’Álvares, a glorificar a “viagem dos três reis do Oriente para adorar o Menino”. A pandemia de covid-19 sugou alguma da energia ao Cantar dos Reis, tendência que Bento Pimenta espera ver invertida. “Estamos a fazer um apanhado de mais casas e a mandar um convites para nos receberem. Mandamos por WhatsApp ou por e-mail. Se aparecerem muitas, poderemos abrir mais dias”, realça.
Habituados a animar os lares do centro da cidade nos sábados à tarde, os escuteiros são protagonistas de longas noites a dar música, à chuva ou ao sol, “com bucha ou sem bucha”, no seu território ou fora dele. “Uma vez, fomos a uma casa em Pevidém e íamos sair às 01h00 de sábado para domingo. Há um amigo que diz para irmos a Ponte de Lima. Fomos e chegámos a casa às 05h00”, ri-se.
Este costume porta a porta é também um meio para recolher donativos. É assim em São Dâmaso e em Santa Eufémia de Prazins. “É a maior fonte de receita do agrupamento. Dá margem para comprar material e para ajudar as crianças nas atividades. Estamos gratos a todas as pessoas que nos abrem a porta”, realça Miguel Cardoso. Chefe-adjunto do Agrupamento 323, também fundado em 1969, a 16 de junho, é escuteiro desde os seis anos e cresceu com uma tradição se adaptou à recente expansão da freguesia.
O CNE deixa um postal de Boas Festas em todas as casas, com o respetivo contacto telefónico, à espera de agendamento, e lança-se para dois fins de semana de Reisadas, de sexta a domingo, entre 06 e 20 de janeiro. A experiência em cada casa que abre a porta é irrepetível: “Há casas em que cantamos à porta e vamos embora e há casas que querem ser as últimas, com mesa cheia, mantendo as tradições de bem receber”.
Sem Cantares de Reis desde a construção do centro social, inaugurado em 1998, São Cristóvão de Selho reativou o costume em 2019, através da Comissão de Festas local. A angariação de donativos funcionou e motivou o conselho económico da paróquia a manter o hábito, com pelo menos uma dúzia de pessoas a fazer-se ouvir ao som da viola, do bombo, das castanholas e das pandeiretas. “Vamos às casas comerciais, como cafés. E batemos às portas: se as pessoas abrirem, muito bem. Se não abrirem, seguimos em frente”, indica Manuela Machado.
Os Reis com “botador” pedem salvaguarda
Júlio Oliveira só deixou de cantar os Reis nos últimos dois anos: “Fazem parte da minha vida desde os 10 anos, mas já tenho 60 e estou a ficar um bocado velho”. Os sons que ecoam por Oleiros em janeiro distinguem-se dos das freguesias à volta: compostos por Alberto Rodrigues, no final do século XIX, os Reis de São Vicente dependem de uma voz que lança a quadra, antes de ser repetida por um coro polifónico masculino, a capella. Essa voz principal é a do “botador dos Reis”, papel que cabe sempre a um descendente do compositor. “Botador das quadras” por mais de 30 anos, no interior das casas, à porta e até nos telhados, Júlio Oliveira espera que o costume sobreviva: “Neste momento, não há botador. A tradição está praticamente parada. É uma pena. Adoro isto e não é por acaso que andei tantos anos”.
Os Reis por quem os canta
Bento Pimenta
São Dâmaso (Corpo Nacional de Escutas – Agrupamento 331)
“Se houver um ano em que não vou aos Reis, não sei o que me parece. Pelo menos a uma casa tenho de ir. É uma tradição que me está enraizada há 55 anos. Só não participo se estiver muito doente”
Miguel Cardoso
Santa Eufémia de Prazins (Corpo Nacional de Escutas – Agrupamento 323)
“Antigamente, íamos na hora e batíamos à porta. Aliás, até cantávamos sem saber se as pessoas estavam em casa. Se estivessem, abriam. Se não estivessem, não abriam. Agora é tudo agendado”
Júlio Oliveira
Oleiros (Reis de São Vicente)
“Há pessoas que abrem a porta e preferem que cantemos lá dentro. Algumas casas até fechavam as portas e só nos deixavam sair de manhã. Chegámos a cantar os Reis toda a noite, até às 08h00”
Manuela Machado
São Cristóvão de Selho (Conselho Económico da Paróquia)
“Pertencendo ao conselho económico, quisemos fazer alguma coisa para angariar dinheiro. É uma mais-valia, porque se continua com uma tradição antiga e se junta o útil ao agradável”