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A senha de Wladimir para a liberdade era uma canção de duas frentes

Tiago Mendes Dias
Política \ quarta-feira, abril 24, 2024
© Direitos reservados
Sem dogmas, nem imposições, Wladimir Brito aderiu aos movimentos de libertação das colónias africanas, mas também à oposição lusa ao Estado Novo. No Exército, elevou o volume para se ouvir “Grândola".

Quando dormia no quartel, algo de que pouco gostava, o oficial rodoviário Wladimir Brito sentava‐se no sofá de sempre para ouvir música enquanto lia; sintonizava a Rádio Clube Português ou a Antena 2. “Quando o Brito chega, temos música”, recorda, citando os recorrentes gracejos dos militares do CICA 2, estrutura vocacionada para a condução de veículos militares, na Figueira da Foz. Assim foi na noite de 24 de abril. Aquele estudante de direito que fora expulso da Universidade de Coimbra um ano antes não exibia nervosismo, mas estava ansioso.

“Sabíamos que íamos participar num golpe de Estado. Éramos uma geração com muita sorte: derrubar um regime e criar as independências nacionais das colónias. Tudo o que poderíamos almejar estava a acontecer”, descreve o advogado e professor jubilado da Universidade do Minho, radicado em Guimarães desde 1977.

Wladimir soube nesse mesmo dia, pouco antes do almoço, que o golpe iria desencadear‐se na transição de 24 para 25 de Abril. Os capitães Sousa Ferreira e Dinis de Almeida, o “Fittipaldi das Forças Armadas”, lideravam as movimentações na Figueira. Não havia dúvidas quanto às tarefas: sintonizar a rádio, ouvir a senha e dar o sinal para o arranque das operações, antes de tomar o comando do centro de transmissões. “Se eu fizesse isso, ninguém ia estranhar”, explica. Às 22h55, os Emissores Associados de Lisboa transmitem a senha - “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho -, mas ela não é audível em todos os pontos do país. Às 00h20, vai para o ar na Renascença “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso. O volume do rádio sobe na Figueira. Os oficiais reunidos no bar levantam-se um a um para se fardarem e armarem.

Sob a veste de polícia militar, o serviço que efetuara nesse dia, Wladimir sobe as escadas, de pistola. Ao seu lado, estava Domingos, um bom atirador; os dois militares no centro de transmissões tinham acesso a armas. Assim que entraram, Domingos levantou a G3, mas o oficial rodoviário aconselhou calma. “Os soldados, modéstia à parte, gostavam de mim, porque eu os tratava com muita dignidade”, recorda. Explicou que estava em curso um movimento para derrubar o regime e que nenhum militar era obrigado a aderir. Se não participassem, teriam de ficar detidos por precaução, sem efetuar comunicações, nem mexer em armas. O militar junto ao PBX, uma caixa para comunicação telefónica, escondera o livro que estava a ler e, de repente, puxa-o para si. Era o proibido “A praça da canção”, de Manuel Alegre. Wladimir nomeou‐o seu adjunto de operações. “É uma imagem do 25 de Abril que me fica”, vinca.

Controlado o centro de transmissões, a operação corria como previsto, à exceção da coluna proveniente de Aveiro, que chega mais cedo do que o previsto à Figueira. Instalou‐se alguma ansiedade entre os militares do CICA, prontos para o que desse e viesse. “Se fosse necessário combater, combatíamos. Demos todos a palavra de honra. Não desistíamos do golpe”, lembra Wladimir. Era, afinal, uma coluna amiga. A tomada do Quartel do Carmo, onde se refugiara Marcello Caetano, confirmou o sucesso da revolução em marcha. Em pleno 25 de Abril, oficiais fiéis ao regime que tinham ido dormir a casa regressaram “cheios de medo”. Ficaram detidos no bar dos oficiais, mas com dignidade. “Dissemos que a revolução não era para maltratar pessoas, era para mudar um regime. Nem se deu ordens de prisão. Portaram‐se bem”, lembra.

 

Pela democracia, de Zeca Afonso à Constituição de Cabo Verde

A sua consciência política adensa‐se quando ruma a Coimbra, aos 20 anos. Cabo‐verdiano nascido na Guiné‐Bissau, em 1948, numa família com um pai opositor do Estado Novo que “lhe dava a liberdade de fazer as escolhas que entendesse desde muito pequeno”, Wladimir Brito muda‐se para Lisboa em 1967. Por essa altura, já tivera o primeiro contacto com a PIDE, em Cabo Verde.

Na rádio local em que participava com outros estudantes do Liceu, ficou uma vez incumbido de colocar música. O locutor fora beber um café. Colocou música cabo‐verdiana e depois “Menino do bairro negro”, de Zeca Afonso. “Não sabia quem era o Zeca Afonso. Para mim, era um cantor como outro, mas tinha uma voz bonita, com canções bonitas”, descreve. No dia seguinte, um agente da PIDE aparece na rádio e pergunta quem tinha colocado aquela música; era proibida. “Não me fizeram rigorosamente nada, mas apercebi‐me nessa altura de que a PIDE não gostava de um senhor chamado Zeca Afonso”, descreve.

Quando se muda de Lisboa para Coimbra, participa em reuniões clandestinas com outros opositores africanos ao regime e em ações com panfletos, mas não só. Como acreditava que o fim da guerra e a independência das então colónias exigiam um combate ao Estado Novo, envolveu‐se em vários círculos portugueses, com nomes como Orlando de Carvalho, Joaquim Gomes Canotilho ou Vital Moreira. Foi lá que também conheceu a esposa, Sofia Pinto dos Santos, vimaranense.

Expulso no 4.º ano da faculdade pela acusação de reuniões proibidas e de agitar a faculdade num tempo de lutas estudantis, Wladimir Brito viu também interdito o acesso à Universidade de Lisboa e foi integrado no Exército, passando por Mafra e pelo Porto, antes de rumar à Figueira, sem jamais perder o contacto com África.

 

“Não me fizeram rigorosamente nada, mas apercebi‐me nessa altura de que a PIDE não gostava de um senhor chamado Zeca Afonso”, Wladimir Brito, ao recordar o primeiro encontro com a PIDE, enquanto estudante do Liceu, em Cabo Verde

 

Depois de sentir Bissau em plena Guerra Colonial – “era um Saigãozito numa espécie de Vietname, com prostituição e militares com traumas de guerra” –, o ainda estudante regressou em 1975 a uma Guiné já independente para colmatar a “falta de quadros intelectuais”. Apesar de as transições gerarem sempre rutura, “não contava com um regime tão autoritário” e teve problemas para deixar o país rumo a Cabo Verde.

Na sua terra mãe, também houve autoritarismo, mas bem menos severo. Pedro Pires liderou o país até que, em 1991, se dão as primeiras eleições livres. A 13 de janeiro, o Movimento para a Democracia, apoiado pelo advogado radicado em Guimarães, vence o sufrágio, e Carlos Veiga torna‐se primeiro‐ministro. Abre‐se a porta a uma nova Constituição, em grande parte redigida a partir do seu gabinete, em Guimarães; viria a ser aprovada em 25 de setembro de 1992, numa “galeria cheia de gente e aplausos”. Wladimir Brito orgulha‐se de um documento que impõe fortes bloqueios à dissolução da Assembleia Nacional. “Tenho a sorte de dizer que tenho uma vida com grandes realizações: a democracia em Portugal e a independência nas antigas colónias”, reitera, a partir desse mesmo local de trabalho.

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