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A prontidão é a argamassa de um povo que gosta de estar junto

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ segunda-feira, fevereiro 28, 2022
© Direitos reservados
Embora opacas, as pedras da igreja românica de Matamá, solidamente amarradas umas nas outras, espelham uma comunidade que se une para uma festa… ou para erguer um centro paroquial.

Num dos poucos dias em que a chuva ameaça e o nevoeiro paira sobre Guimarães, uma igreja apresenta-se quase que camuflada entre o cinza que a envolve. De feições românicas e texturas desgastadas aqui e ali, é o testemunho mais vincado da comunidade que habita a encosta nascente da montanha da Penha há centenas de anos. E comunidade é um termo adequado para descrever Matamá, território integrado na freguesia de Infantas e paróquia do Arciprestado de Guimarães e Vizela. “Esta é uma paróquia muito pequena, mas unida. Faz-se qualquer coisa e aparece toda a gente”, descreve Inês Mendes, 55 anos.

Nasceu numa “casa de lavradores”, na quinta anexa ao templo, e vive agora no outro lado daquela que é obviamente denominada a Rua da Igreja. A oliveira do adro ainda é a mesma, quando recorda uma infância em que os seus pares já sabiam o que era agir em conjunto. “Íamos a pé para a escola, para Infantas. Conhecíamo-nos bem uns aos outros. Ainda vivem quase todos aqui. Esperávamos todos uns pelos outros. Não havia carros, não tínhamos medo”, realça, a propósito de um tempo de “caminhos de terra”.

Aos fins de semana, frequentava a catequese e ia à missa anunciada pelo pai – subia o escadote de ferro na fachada para tocar o sino e ajudava depois o padre Rómulo Pereira. Nesse tempo, os crentes ainda circulavam e rezavam sobre um piso de madeira, mas o tempo apodreceu-o e ditou a sua substituição; no início da década de 90, estima Inês Mendes, colocou-se uma tijoleira parda que em nada se coaduna com a estética da igreja.

O tesoureiro da Fábrica da Igreja Paroquial admite-o. “Um dos meus desejos é mudar o chão. Não tem nada a ver com o resto. Foi uma solução que achámos barata na altura e fácil de lavar. Foi utilitário”, descreve José Manuel Salgado.

Responsável pelo cargo desde 2013, apenas supervisionou a reparação do telhado, para evitar a infiltração de água nos invernos. Enquanto espera pelas intervenções que lhe deem a harmonia estilística em falta, o interior daquela peça românica distingue-se pela talha que sustenta o retábulo-mor, colorido com um bordeaux intenso, e os retábulos laterais, em tons celestes – os ornamentos aludem ao século XVIII. Entre as imagens ali exibidas, há uma de São Tomé que remonta à Idade Média, estima José Manuel Salgado. É a mais pequena entre as restantes ali ostentadas: São João, a mais recente, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição e a Senhora do Ó.

Celebrada a 18 de dezembro, precisamente o dia da criação da Fábrica da Igreja Paroquial, em 1940, essa santa de inspiração mariana é a bússola para as festas da paróquia e também para as preces de mulheres grávidas, conta Inês Mendes. “Pelo menos três grávidas vieram aqui. Uma era do Porto. Disseram-lhe que havia aqui uma Senhora do Ó, advogada das grávidas”, esclarece.

Quanto à celebração da padroeira, Matamá organiza uma “hora de adoração” a 18 de dezembro, restrita à igreja, e as festas da Senhora de Fátima e da Senhora do Ó, em julho, com andores e animação, descreve a paroquiana.

 

Retábulo-mor e retábulos laterais da igreja paroquial de Matamá © Hugo Marcelo/JdG

Retábulo-mor e retábulos laterais da igreja paroquial de Matamá © Hugo Marcelo/JdG

 

Voluntários a todo o momento para as festas. E também para um novo centro comunitário

A festa da padroeira é apenas uma das etapas em que os mataenses dão corpo à sua veia coletiva. Há mais: desfiles de Carnaval organizados por um dos restaurantes locais e iluminações de Natal para toda o território a partir da casa de cada um. “Num ano, alguém colocou uma música de Natal a partir do seu carro e, de repente, acenderam-se as casas com luzes de Natal. Não temos iluminação de rua, mas esse é o nosso Natal”, descreve Sara Andrade, arquiteta de 33 anos, responsável por um grupo na rede social Facebook onde se partilha informação sobre a comunidade.

Noutras quadras natalícias, os residentes enveredaram pelo concurso de presépios ou então escreveram postais, baralharam-nos e distribuíram-nos. “Arranjámos motas para distribuírem o correio. Sempre que propomos atividades, a comunidade responde”, salienta.

 

 

“Na Páscoa, o compasso vai engrossando. Começa com seis pessoas e chega ao fim com 50. A família junta-se ao compasso e vai à casa seguinte. Vai-se somando assim até chegar ao fim da rua. Parece uma procissão. Ou uma claque de futebol”, Sara Andrade

 

A Páscoa é, todavia, a celebração que mais distingue uma comunidade com séculos de existência - há até indícios de uma mamoa do Neolítico - face às outras paróquias vimaranenses. Ali, o compasso dá-se à segunda-feira, e a comunidade recusa mudar a data. “Cristo ressuscitou ao terceiro dia. Assim fazemos a conta certa”, ri-se Sara.

Essa tradição remonta aos primeiros anos de Rómulo Pereira na paróquia, na década de 70. Nessa altura, o sacerdote era responsável por Fareja, Infantas e Matamá e deslocava-se a todas as casas. Assim, a visita durava dois dias, cabendo àquela comunidade na encosta da Penha a tarde de segunda-feira.

“Depois de outro padre ter tomado conta de Fareja, o padre ficou só com Infantas e Matamá. Então sugeriu o domingo, até porque começaram a sair mais cruzes. Mas estávamos habituados à segunda-feira”, refere Inês Mendes. O hábito dos mataenses visitarem outros familiares no domingo, deixando aquele território, explica igualmente a relutância em alterarem o momento em que recebem a imagem de Jesus Cristo.

A forma como a visita se desenrola às segundas-feiras é outra amostra do espírito gregário de quem vive Matamá: “Começa com seis pessoas e chega ao fim com 50. A família junta-se ao compasso e vai à casa seguinte. Vai-se somando assim até chegar ao fim da rua. Parece uma procissão. Ou uma claque de futebol”, realça Sara Andrade.

Portanto, quando se congeminou a ideia do Centro Paroquial e Comunitário de Matamá, a “partir de 2016 ou de 2017”, estima José Manuel Salgado, os moradores responderam com naturalidade: para angariar dinheiro, organizaram-se pequenos-almoços comunitários e começou a celebrar-se o São João, figura cristã até então sem enraizamento no local. “É uma festa sem raízes, porque o santo nunca foi venerado aqui, mas fechamos a rua principal, com mesas fora da rua, banda a tocar. Algumas famílias encarregavam-se das refeições. Outras das sobremesas. E faziam-se os peditórios”, descreve Sara.

Correspondente a 50% do financiamento total, esse esforço, atrapalhado pela pandemia de covid-19, culminou na inauguração do equipamento a 19 de setembro de 2021. Guarnecido com seis salas e um palco, o centro acolheu desde então as sessões de catequese, mas também ensaios de teatro, concertos e até ginástica. O bar também é utilizado quando necessário angariar fundos, acrescenta.

Fruto do voluntarismo da população, restam apenas 3.800 euros para o Centro Paroquial e Comunitário de Matamá ficar pago, afiança José Manuel Salgado.

 

Equipamento inaugurado a 19 de setembro de 2021 © Hugo Marcelo/JdG

Equipamento inaugurado a 19 de setembro de 2021 © Hugo Marcelo/JdG

 

Terreno inclinado para futuro incerto

Uma das mais recentes iniciativas do Centro Paroquial e Comunitário foi o concerto de Natal do Grupo Coral de Azurém, mas a música é não raras vezes cortesia da casa; mais propriamente de um grupo feminino de canto, as Kerubhins. Sara Andrade é um dos membros mais experientes desse coletivo acabado de fazer 15 anos – foi fundado a 10 de fevereiro de 2007.

Criado a partir da catequese para animar eucaristias, momentos tradicionais como as Janeiras e outras atividades requeridas pela paróquia, o grupo participou em festivais de música de mensagem católica como o Guimarães a Cantar, tendo ganhado prémios, mas também é um mecanismo de cimentar a vida em comunidade entre as jovens de Matamá. “Estamos envolvidas em concertos, na barraquinha do São João, nos eventos de Natal, sempre com o intuito de angariar dinheiro para a paróquia”, descreve a mataense.

Habituado a operar com 14 a 15 mulheres, o grupo depara-se com a necessidade de se renovar, face aos desafios habituais de quem curva a vida dos 20 para os 30 anos. Essa passagem de testemunho faz-se, porém, com cuidado: nenhuma faixa etária deve estar representada por uma só pessoa, sob pena de não ter ninguém para conversar sobre “os assuntos que mais gosta”. “Há sempre assuntos transversais a todas as idades, mas outros não. As mais velhas falam dos casamentos e dos filhos. As mais novas da escola e dos namorados. Uma pessoa que entra tem de estar sempre acompanhada por outros elementos que a compreendam”, descreve.

 

Palco do Centro Paroquial e Comunitário de Matamá © Hugo Marcelo/JdG

Palco do Centro Paroquial e Comunitário de Matamá © Hugo Marcelo/JdG

 

Essa sucessão geracional acarreta, por vezes, a perda de mulheres da comunidade para localidades vizinhas, onde constroem as suas vidas. Sara Andrade reconhece que é difícil os jovens instalarem-se em Matamá. A montanha da Penha é um atrativo, mas também a principal razão para que a área seja quase toda “reserva agrícola ou florestal” no Plano Diretor Municipal. “Não há solos de construção. Temos a desvantagem de não conseguirmos abrigar toda a gente que quer ficar aqui a viver”, sublinha.

Mais velha, Inês Mendes crê que a população até “cresceu um bocadinho” desde a década de 90 do século XX, mas José Manuel Salgado avisa que, para além de umas casas em construção, não se perspetiva mais nada para o local.

Afinal, a Penha está a dois passos de distância e, tal como na adolescência de Inês Mendes ou de José Manuel Salgado, continua a ser um destino privilegiado para os passeios do fim de dia. “Sempre brincámos no Pio IX e nos penedos e na Adega do Ermitão. Às vezes, éramos 10 ou 20 miúdos. Às vezes, à segunda-feira, saio daqui, subo o escadario e venho pelo outro lado. É o nosso parque”, reitera o habitante.

 

Exterior da igreja paroquial © Hugo Marcelo/JdG

Exterior da igreja paroquial © Hugo Marcelo/JdG

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