A prontidão é a argamassa de um povo que gosta de estar junto
Num dos poucos dias em que a chuva ameaça e o nevoeiro paira sobre Guimarães, uma igreja apresenta-se quase que camuflada entre o cinza que a envolve. De feições românicas e texturas desgastadas aqui e ali, é o testemunho mais vincado da comunidade que habita a encosta nascente da montanha da Penha há centenas de anos. E comunidade é um termo adequado para descrever Matamá, território integrado na freguesia de Infantas e paróquia do Arciprestado de Guimarães e Vizela. “Esta é uma paróquia muito pequena, mas unida. Faz-se qualquer coisa e aparece toda a gente”, descreve Inês Mendes, 55 anos.
Nasceu numa “casa de lavradores”, na quinta anexa ao templo, e vive agora no outro lado daquela que é obviamente denominada a Rua da Igreja. A oliveira do adro ainda é a mesma, quando recorda uma infância em que os seus pares já sabiam o que era agir em conjunto. “Íamos a pé para a escola, para Infantas. Conhecíamo-nos bem uns aos outros. Ainda vivem quase todos aqui. Esperávamos todos uns pelos outros. Não havia carros, não tínhamos medo”, realça, a propósito de um tempo de “caminhos de terra”.
Aos fins de semana, frequentava a catequese e ia à missa anunciada pelo pai – subia o escadote de ferro na fachada para tocar o sino e ajudava depois o padre Rómulo Pereira. Nesse tempo, os crentes ainda circulavam e rezavam sobre um piso de madeira, mas o tempo apodreceu-o e ditou a sua substituição; no início da década de 90, estima Inês Mendes, colocou-se uma tijoleira parda que em nada se coaduna com a estética da igreja.
O tesoureiro da Fábrica da Igreja Paroquial admite-o. “Um dos meus desejos é mudar o chão. Não tem nada a ver com o resto. Foi uma solução que achámos barata na altura e fácil de lavar. Foi utilitário”, descreve José Manuel Salgado.
Responsável pelo cargo desde 2013, apenas supervisionou a reparação do telhado, para evitar a infiltração de água nos invernos. Enquanto espera pelas intervenções que lhe deem a harmonia estilística em falta, o interior daquela peça românica distingue-se pela talha que sustenta o retábulo-mor, colorido com um bordeaux intenso, e os retábulos laterais, em tons celestes – os ornamentos aludem ao século XVIII. Entre as imagens ali exibidas, há uma de São Tomé que remonta à Idade Média, estima José Manuel Salgado. É a mais pequena entre as restantes ali ostentadas: São João, a mais recente, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição e a Senhora do Ó.
Celebrada a 18 de dezembro, precisamente o dia da criação da Fábrica da Igreja Paroquial, em 1940, essa santa de inspiração mariana é a bússola para as festas da paróquia e também para as preces de mulheres grávidas, conta Inês Mendes. “Pelo menos três grávidas vieram aqui. Uma era do Porto. Disseram-lhe que havia aqui uma Senhora do Ó, advogada das grávidas”, esclarece.
Quanto à celebração da padroeira, Matamá organiza uma “hora de adoração” a 18 de dezembro, restrita à igreja, e as festas da Senhora de Fátima e da Senhora do Ó, em julho, com andores e animação, descreve a paroquiana.
Voluntários a todo o momento para as festas. E também para um novo centro comunitário
A festa da padroeira é apenas uma das etapas em que os mataenses dão corpo à sua veia coletiva. Há mais: desfiles de Carnaval organizados por um dos restaurantes locais e iluminações de Natal para toda o território a partir da casa de cada um. “Num ano, alguém colocou uma música de Natal a partir do seu carro e, de repente, acenderam-se as casas com luzes de Natal. Não temos iluminação de rua, mas esse é o nosso Natal”, descreve Sara Andrade, arquiteta de 33 anos, responsável por um grupo na rede social Facebook onde se partilha informação sobre a comunidade.
Noutras quadras natalícias, os residentes enveredaram pelo concurso de presépios ou então escreveram postais, baralharam-nos e distribuíram-nos. “Arranjámos motas para distribuírem o correio. Sempre que propomos atividades, a comunidade responde”, salienta.
“Na Páscoa, o compasso vai engrossando. Começa com seis pessoas e chega ao fim com 50. A família junta-se ao compasso e vai à casa seguinte. Vai-se somando assim até chegar ao fim da rua. Parece uma procissão. Ou uma claque de futebol”, Sara Andrade
A Páscoa é, todavia, a celebração que mais distingue uma comunidade com séculos de existência - há até indícios de uma mamoa do Neolítico - face às outras paróquias vimaranenses. Ali, o compasso dá-se à segunda-feira, e a comunidade recusa mudar a data. “Cristo ressuscitou ao terceiro dia. Assim fazemos a conta certa”, ri-se Sara.
Essa tradição remonta aos primeiros anos de Rómulo Pereira na paróquia, na década de 70. Nessa altura, o sacerdote era responsável por Fareja, Infantas e Matamá e deslocava-se a todas as casas. Assim, a visita durava dois dias, cabendo àquela comunidade na encosta da Penha a tarde de segunda-feira.
“Depois de outro padre ter tomado conta de Fareja, o padre ficou só com Infantas e Matamá. Então sugeriu o domingo, até porque começaram a sair mais cruzes. Mas estávamos habituados à segunda-feira”, refere Inês Mendes. O hábito dos mataenses visitarem outros familiares no domingo, deixando aquele território, explica igualmente a relutância em alterarem o momento em que recebem a imagem de Jesus Cristo.
A forma como a visita se desenrola às segundas-feiras é outra amostra do espírito gregário de quem vive Matamá: “Começa com seis pessoas e chega ao fim com 50. A família junta-se ao compasso e vai à casa seguinte. Vai-se somando assim até chegar ao fim da rua. Parece uma procissão. Ou uma claque de futebol”, realça Sara Andrade.
Portanto, quando se congeminou a ideia do Centro Paroquial e Comunitário de Matamá, a “partir de 2016 ou de 2017”, estima José Manuel Salgado, os moradores responderam com naturalidade: para angariar dinheiro, organizaram-se pequenos-almoços comunitários e começou a celebrar-se o São João, figura cristã até então sem enraizamento no local. “É uma festa sem raízes, porque o santo nunca foi venerado aqui, mas fechamos a rua principal, com mesas fora da rua, banda a tocar. Algumas famílias encarregavam-se das refeições. Outras das sobremesas. E faziam-se os peditórios”, descreve Sara.
Correspondente a 50% do financiamento total, esse esforço, atrapalhado pela pandemia de covid-19, culminou na inauguração do equipamento a 19 de setembro de 2021. Guarnecido com seis salas e um palco, o centro acolheu desde então as sessões de catequese, mas também ensaios de teatro, concertos e até ginástica. O bar também é utilizado quando necessário angariar fundos, acrescenta.
Fruto do voluntarismo da população, restam apenas 3.800 euros para o Centro Paroquial e Comunitário de Matamá ficar pago, afiança José Manuel Salgado.
Terreno inclinado para futuro incerto
Uma das mais recentes iniciativas do Centro Paroquial e Comunitário foi o concerto de Natal do Grupo Coral de Azurém, mas a música é não raras vezes cortesia da casa; mais propriamente de um grupo feminino de canto, as Kerubhins. Sara Andrade é um dos membros mais experientes desse coletivo acabado de fazer 15 anos – foi fundado a 10 de fevereiro de 2007.
Criado a partir da catequese para animar eucaristias, momentos tradicionais como as Janeiras e outras atividades requeridas pela paróquia, o grupo participou em festivais de música de mensagem católica como o Guimarães a Cantar, tendo ganhado prémios, mas também é um mecanismo de cimentar a vida em comunidade entre as jovens de Matamá. “Estamos envolvidas em concertos, na barraquinha do São João, nos eventos de Natal, sempre com o intuito de angariar dinheiro para a paróquia”, descreve a mataense.
Habituado a operar com 14 a 15 mulheres, o grupo depara-se com a necessidade de se renovar, face aos desafios habituais de quem curva a vida dos 20 para os 30 anos. Essa passagem de testemunho faz-se, porém, com cuidado: nenhuma faixa etária deve estar representada por uma só pessoa, sob pena de não ter ninguém para conversar sobre “os assuntos que mais gosta”. “Há sempre assuntos transversais a todas as idades, mas outros não. As mais velhas falam dos casamentos e dos filhos. As mais novas da escola e dos namorados. Uma pessoa que entra tem de estar sempre acompanhada por outros elementos que a compreendam”, descreve.
Essa sucessão geracional acarreta, por vezes, a perda de mulheres da comunidade para localidades vizinhas, onde constroem as suas vidas. Sara Andrade reconhece que é difícil os jovens instalarem-se em Matamá. A montanha da Penha é um atrativo, mas também a principal razão para que a área seja quase toda “reserva agrícola ou florestal” no Plano Diretor Municipal. “Não há solos de construção. Temos a desvantagem de não conseguirmos abrigar toda a gente que quer ficar aqui a viver”, sublinha.
Mais velha, Inês Mendes crê que a população até “cresceu um bocadinho” desde a década de 90 do século XX, mas José Manuel Salgado avisa que, para além de umas casas em construção, não se perspetiva mais nada para o local.
Afinal, a Penha está a dois passos de distância e, tal como na adolescência de Inês Mendes ou de José Manuel Salgado, continua a ser um destino privilegiado para os passeios do fim de dia. “Sempre brincámos no Pio IX e nos penedos e na Adega do Ermitão. Às vezes, éramos 10 ou 20 miúdos. Às vezes, à segunda-feira, saio daqui, subo o escadario e venho pelo outro lado. É o nosso parque”, reitera o habitante.