“A grande serpente” prepara-se para voltar a sibilar… e a inquietar
Quando olha para a Guimarães de 2022, Moncho Rodríguez vê a mesma cidade que fazia questão de “incluir” nas digressões do início da década de 90, mas também um espaço com “facilidades” que, à época, não existiam: a urbe dispõe hoje de infraestruturas como o Centro Cultural Vila Flor, o Centro Internacional de Artes José de Guimarães e o renovado Teatro Jordão, com os respetivos cursos de Teatro e de Artes Visuais, quando, em 1994, não dispunha de qualquer equipamento exclusivo para as artes performativas – a versão original do Jordão encerrara em 1993.
O encenador assumiu então a Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral (ODIT), recém-criada pela mão do então vereador da Cultura Francisco Teixeira, e dirigiu A Grande Serpente, fenómeno de criação contemporânea e de participação comunitária, com mais de 300 intérpretes, alguns deles hoje reconhecidos no panorama artístico nacional – Victor Hugo Pontes, Joana Antunes, João Melo e Sofia Escobar são exemplos. Passados 28 anos, a obra vai ser recriada no mesmo local – Fábrica Âncora -, também a 02 de julho, mas com novos protagonistas, novas texturas… e novas inquietações.
“Quais são as novas inquietações? Ou vamos simplesmente ser consumidores? Temos de ter muito cuidado com a arte, porque mexe com a vida e com as energias vitais”, proferiu, na conferência de imprensa de lançamento da peça, antes de sugerir que “a retoma da encenação pode ser um desafio bem maior do que na primeira vez”.
Esse desafio com “gente inquieta e bastante apaixonada pelo seu lugar”, mais nova ou mais velha de idade, arranca no próximo sábado, com o primeiro de vários ensaios previstos para os próximos três meses. “Vão decorrer às terças, quartas, quintas e sextas. Mas quem quiser vir durante os quatro dias, vem. Quem quiser vir durante dois dias, vem. Vamos manter a ideia de que todos os ensaios são uma celebração aberta a todos. É uma forma diferente de perceber como se constrói um espetáculo”, promete.
Esse aventado processo artístico assemelha-se ao de 1994, quando o encenador galego recusou limitar a participação numa fase em que os inscritos já superavam as três centenas. Ao fim de décadas de experiência em Portugal – dirigiu artisticamente a ODIT até 2001 – e no Brasil, Moncho Rodríguez crê a produção cultural, mais do que “da vontade de um encenador, de um escritor ou de um ator”, “depende da comunidade” e da dimensão social em torno da criação.
“É preciso pensar se realmente aquilo que se produz e se cria em Guimarães está sendo feito de acordo com as necessidades do seu público. Se, na cultura, não há uma cumplicidade e um desafio, nunca vamos ser vanguarda de nada. É preciso um objetivo comum”, vincou, lembrando que “todos os espaços da cidade eram poéticos e possíveis” quando se trabalhava a primeira versão de A Grande Serpente.
Recolocar “as pessoas no centro”
Com 25 pessoas já inscritas - prevê-se que o número dispare, com a colaboração das escolas -, a nova versão da encenação vai avançar com a colaboração da Associação de Socorros Mútuos Artística Vimaranense (ASMAV), dinamizada, em parte, pelo vereador municipal da Cultura na origem da ODIT. Na sede da associação, Francisco Teixeira vincou que a iniciativa é uma oportunidade para se “desenvolver um novo processo criativo, pedagógico e social”, com base no texto de Racine Santos e na encenação de Moncho Rodríguez, ambos “icónicos para a história da cultura em Guimarães”. “Houve uma chamada publica e apareceram centenas de pessoas. De seguida, houve um processo artístico e social que mudou a cidade a nível estético, das estruturas de produção, das relações internacionais”, vincou.
Para o responsável, a nova versão de A Grande Serpente vai “colocar as pessoas, e não os equipamentos e as grandes infraestruturas no centro”, convidando-as a “refazerem a sua identidade”. “Isto traz tensões grandes. Isto exige que as pessoas se repensem. É um teatro com exigência ao dispor de todos”, sintetiza.
Também presente na apresentação, Francisco Leite Silva, o Arão da encenação original, enalteceu “o momento transformador para a vida artística da cidade”, vivido em 1994. “Não era fácil na altura, mas conseguimos encontrar os caminhos. Por vezes, os ensaios prolongavam-se pela madrugada e criou-se um núcleo de artistas como o Victor Hugo”, realçou o ator, galardoado por um vídeo de promoção turística sobre as Aldeias Históricas de Portugal.
Para resumir todo o propósito do regresso A Grande Serpente, Moncho Rodríguez defendeu que o “grande monumento” de Guimarães, mais do que o património e as infraestruturas, tem de ser as pessoas.