A família, a arte, o vento: assim esvoaça um balão entre Guimarães e Galway
Sarah Jane Burke entra no Oub’lá com o companheiro, Tiago Machado, e os dois filhos – um menino de cinco anos e uma menina de dois. Deambula por aquele espaço moderadamente iluminado, pontuado de arte nas paredes e de garrafas em pilha atrás do balcão, com o à-vontade de quem o frequenta com regularidade. A predileção por aquele cantinho da Praça de Santiago não se deve apenas à programação cultural; é mais um dos frutos da relação entre a Irlanda natal e o berço que a adotou, em curso há seis anos.
“Conhecemos o Jorge Lopes [proprietário do Oub’Lá] por casualidade. Estávamos a voltar da Irlanda e o nosso filho estava sempre a ir para o lugar do vizinho no avião. Na altura, ele morava em Dublin. Depois de abrir o Oub’Lá, temos lá ido bastantes vezes com os nossos pequeninos. Somos sempre bem-vindos”, conta ao Jornal de Guimarães.
A vocalista dos Hot Air Balloon, projeto indie folk que criou com Tiago em 2013, residiam os dois em Vigo, gosta também de levar as crianças às hortas pedagógicas ou ao Parque da Cidade Desportiva, localizado na sua área de residência, a União de Freguesias de Candoso São Tiago e Mascotelos. São lugares onde sobressai o verde, cor que lhe é bem familiar desde que se reconhece como pessoa.
Aos 38 anos, Sarah ainda guarda com nitidez as imagens, sons e cheiros do mundo em que cresceu, materializado no trajeto de 30 quilómetros entre Tuam, a vila de cerca de oito mil habitantes onde nasceu, e Galway, cidade na costa oeste da Ilha Esmeralda, com cerca de 80 mil habitantes. De segunda à sexta, “estava na escola e era tudo igual”, mas, aos sábados, o Mercado de Galway era o lugar em que “experimentava novas maneiras de ver o mundo”.
“O mercado foi muito importante na minha infância e adolescência. Via muitas coisas diferentes, sentia cheiros diferentes. Ao sábado, a cidade estava viva. Havia vegetais biológicos, coisas feitas à mão, comida. Tínhamos diferentes texturas e sabores”, relembra. De “criança até adulta”, foi sempre lá com o pai, para vender as flores criadas nas estufas da empresa familiar. “Vendíamos petúnias, por exemplo. Ramos também. Hoje em dia, importam-se algumas coisas, mas muitas ainda são feitas na minha vila”, refere, a propósito do negócio da família.
Já a origem da sua relação com as artes é precisamente a mesma: oriunda de uma família com “pessoas bastante musicais”, a mãe dava concertos e participava em espetáculos de pantomime – uma forma de teatro de rua típica do Reino Unido e da Irlanda. Ativa em alguns desses números enquanto criança, juntamente com o irmão e da irmã, Sarah enaltece a “cor” que esses “estímulos” deram ao seu crescimento e à própria vida da cidade, principalmente no Inverno.
“Os invernos na Irlanda são muito duros. Não há muito sol. O dia começa tarde e acaba cedo. Era uma maneira de fazermos algo de divertido. Quando tínhamos público, íamos todos para o palco festejar a noite e tudo a cantar”, testemunha. Em criança, participou igualmente nalguns coros.
Pilar no seu crescimento, a família revelou-se igualmente crucial para as decisões que a levariam à Galiza e, mais tarde, a Guimarães. Sem “saber muito bem o que queria”, Sarah Jane escolheu Administração de Empresas na hora de entrar para a universidade, até pelo negócio dos pais. Mas também assegurou uma formação em Espanhol; a motivação veio de um tio que reside nas Canárias. “Quando vinha com os meus primos, achava muito engraçado como eles conseguiam falar duas línguas de forma muito natural. Tive interesse nisso”, esclarece. Enquanto aluna, cumpriu um ano de Erasmus em Vigo e, depois do regresso à Irlanda, fixou-se na cidade galega em 2004. Depois de levantar voo, o balão de ar quente seguia uma nova rota.
Uma relação com química… e muita música
Na sua nova casa, Sarah Jane concluiu um mestrado em Negócios Internacionais, inscreveu-se num outro, de ensino, e… conheceu Tiago Machado. Tudo começou em 2009, quando, juntamente com uma amiga, procurava uma terceira pessoa para compartilhar a residência. “Estávamos à procura de alguém para o apartamento, e o Tiago apareceu à porta. Começámos a falar e depois a namorar”, conta.
Oriundo de Joane, Tiago estudava guitarra clássica na Galiza, gostava também de cantar e as composições foram surgindo. A aventura da dupla pela música não começou com um projeto cuidadosamente elaborado de raiz, mas a partir de sons que ficam a levitar de forma “muito natural”. À medida que o reportório se consolidou, os Hot Air Balloon deram concertos na Galiza, tocaram nas ruas, viajaram pela Europa e, já depois de se fixarem em Guimarães, lançaram o primeiro álbum, Behind the walls, em 2016.
Nesse trabalho com dez faixas, Sarah Jane e Tiago vagueiam por lugares e memórias das suas vidas, num registo íntimo que merece o suporte do violino de Samuel Coelho, da bateria de Pedro Oliveira e do baixo de David Terceiro Viegas. O disco valeu-lhes uma nomeação para os Independent Music Awards, na categoria de Cantor e Compositor Folk. Tiago Machado viajou mesmo para Nova Iorque, para a sessão de entrega dos prémios, a 12 de novembro de 2016, mas Sarah Jane não teve essa possibilidade. “Não fui, porque o meu filho tinha meses. Não ganhámos. A partir desse disco, temos feitos algumas músicas, mas ainda não lançámos nenhum disco”, descreve.
Apreciadora das cantoras blues e soul, bem como da compatriota Lisa Hannigan, a intérprete realça mesmo que o futuro surgirá “com calma e sem pressão”, já que a música é feita por gosto e não como “necessidade de ser lançada a toda a hora”, reitera. E ainda a propósito dos Hot Air Balloon, guarda um momento para explicar o porquê do nome. “Tem a ver com a ideia desta junção entre Galway e Guimarães, este sentimento de se estar em suspenso”, confessa.
Cidades de cultura, mas com linguagens diferentes
O primeiro contacto com a terra que a viria a acolher deu-se a cerca de dez anos, numa das primeiras edições do Noc Noc. As ruas e as casas do centro histórico transbordavam de arte, num “espírito” que marcou Sarah Jane pela positiva. “A cidade em si é muito linda e as pessoas têm muito cuidado. Vimos algumas exposições de arte e alguns concertos. Foi uma experiência muito boa, muito tranquila, muito relaxada”, recorda, a propósito de um território que foi Capital Europeia da Cultura (CEC) em 2012.
Mas o fervilhar artístico não é realidade estranha para Sarah Jane. Com a “arte e a criatividade” bem enraizadas na população, Galway foi CEC em 2020, ano da pandemia. A “oferta cultural” faz com que as parecenças entre as urbes sejam “muitas”, mas diferenças também as há. Residem sobretudo na espontaneidade com que as pessoas se expressam. “Em Galway, anda-se na rua e vê-se alguém a fazer uma peça de teatro. Ou vê-se uma banda gigante de músicos, com um grupo de pessoas a ver e a aplaudir. São parecidas, mas diferentes”, descreve.
Até a “forma colorida” como os irlandeses se vestem, qual “arco-íris no meio da chuva” marca a diferença para os vimaranenses, mais discretos, a seu ver.
“Saudades daquele vento mesmo frio”
Embora “goste muito do seu país”, Sarah Jane privilegiou sempre a Galiza ou o Norte de Portugal para construir família com Tiago. Há uma diferença essencial para a decisão: o clima.
Na costa oeste da Irlanda, o clima é mais “duro” e é possível “ter as quatro estações do ano numa hora” – “de repente está sol, de repente está vento, de repente está a chover”, salienta. Embora em Guimarães a chuva seja frequente, as “estações do ano estão mais bem definidas”, o que “acaba por ser mais proveitoso para as crianças”.
“Cada estação traz uma coisa diferente: o verão é a praia ou para a piscina, e para noites fora até muito tarde com os amigos. Gosto muito do outono, de quando começam a cair as folhas e daquele vento frio, mas ainda não chove muito”, assinala.
Por muito agrestes que as terras verdes da Irlanda possam ser, Sarah Jane espera lá regressar no próximo Natal. Se nenhum contratempo se interpor no rumo do balão, é certo que vai regressar ao mercado para “matar saudades dos cheiros e do barulho”.
A acontecer, fá-lo certamente a um sábado. Aos domingos, o programa poderá ser outro. Quando vivia em Tuam, a família reservava esses dias para ver o Oceano Atlântico embater nas costas acidentadas irlandesas. “O meu pai gostava de ver as ondas baterem contra a costa. Tenho saudades de sentir aquele vento mesmo frio. É preciso estar vestido de forma apropriada para o tempo”, recorda.
Regra geral, esse programa terminava sempre num “sítio quentinho” a contrastar com o ar livre, com um “whiskey quente, uma Guinness ou um chá” à disposição, sob “uma chaminé”. É este ritual que pretende reviver com os filhos. “Quero que eles também se sintam irlandeses. Quero dar-lhes essa parte de mim. Quero que eles saibam de onde venho”, afirma.
E assim, daqui a uns meses, se a situação pandémica e a meteorologia assim o permitirem, Sarah Jane verá de novo o sol pôr-se na baía, como diz a canção.